A crise chegou em forma de oportunidade e de um simples desafio de empreendedorismo no feminino, duas ex-alunas da NOVA FCSH fundaram uma empresa que permite viajar no tempo através da arqueologia.
A capital esconde mais segredos do que se imagina, principalmente debaixo dos pés dos lisboetas. Ainda antes de Cristo, Lisboa foi casa de dezenas de gerações e as suas histórias estão, literalmente, enterradas. Alguns destes mistérios começaram a ser desvendados e outros ainda procuram a luz do dia.
Nesta encruzilhada entre percorrer as ruas de Lisboa e descobrir os seus segredos, Raquel Policarpo e Inês Ribeiro, arqueólogas e antigas alunas da NOVA FCSH, descobriram uma oportunidade de negócio que começa a ter significado. A equipa está a crescer e tem já perto de 15 elementos, a maioria em part-time. Raquel e Inês não só realizam percursos em Lisboa – a pé têm a duração de duas a três horas e os de viatura variam consoante o itinerário – como começaram a expandir-se para outras cidades, como Mértola, Sintra, Conímbriga e ainda outros pontos do país, consoante o pedido dos clientes. Têm várias parcerias, entre elas o Hotel Eurostars Museum, o Hotel Alma Lusa e, recentemente, com a Associação Mutualista do Montepio.
Mas tudo começou com um simples e-mail dos Alumni da NOVA FCSH, em 2009. Raquel recorda os anos de trabalho depois da licenciatura em arqueologia e, em plena época de crise, uma notificação na caixa de entrada mudou tudo: “(Recebi um e-mail a) falar de um programa de apoio ao empreendedorismo feminino, que veio através da União Europeia e que passou por vários intervenientes, e a NOVA FCSH estava a divulgar e achei que era a oportunidade ideal”.
Juntamente com Inês, concorreram ao programa Mulher+ e levaram na mala de trabalho o projeto e ideias, relembra Inês: “O programa ajudou-nos a definir e a planear tudo, nós não éramos empresárias. Abrimos a empresa e começamos a criar os nossos pacotes, os nossos passeios, e no decorrer começamos a criar outras atividades”. No meio deste processo, o apoio familiar foi o pilar das duas arqueólogas.
A agência de turismo arqueológico nasceu em 2011 com o nome “Time travellers” ou, em bom português, viajantes do tempo. Os participantes visitam várias épocas, como a Lisboa antiga, islâmica, do terramoto de 1755, dos espiões, entre outras. “Temos as tours temáticas e por épocas e a Lisboa arqueológica é o nosso tour mais genérico”, aponta Raquel.
Quase uma década depois da fundação da micro-empresa, o público-alvo teve uma reviravolta irónica. Em 2011, a empresa estava virada exclusivamente para os estrangeiros porque “pensávamos que só os turistas estrangeiros é que tinham curiosidade por este tipo de coisas e aprendemos que não”, confessa Raquel. Inês acrescenta uma das razões para que este pensamento fosse unânime para as duas: “Durante muitos anos, grandes obras paravam e os arqueólogos é que eram os maus. Por isso achávamos que havia essa indiferença”, explica.
Por esta razão, mesmo com a reviravolta do público-alvo, as crianças sempre estiveram em primeiro plano. As atividades vocacionadas para o público infantil dão como nome de “learning travellers” para “com os pequeninos mudar mentalidades”, ri-se Raquel. Arqueólogas de “canivete suíço”, são empreendedoras, gestoras e contadoras de histórias. “Segredos de Lisboa” é o nome do livro que editaram em 2015 e que já faz parte do Plano Nacional de Leitura.
“Pegar numa parede velha e contar uma história”
Que segredos esconde o subsolo de Lisboa? As arqueólogas têm os seus segredos preferidos. Um deles remonta há seis mil anos, com a descoberta de uma lápide funerária fenícia, conhecida como estela funerária, de 73 centímetros. É dedicada a Wadbar, filho de Ibadar, os nomes mais antigos de habitantes lisboetas até agora conhecidos. Este artefacto foi encontrado nas escavações para a edificação de um hotel de cinco estrelas, o Eurostars Museum, na Rua do Cais de Santarém. Mas a história não fica por aqui.
Este é o segredo preferido de Raquel. Desde o século VI a.C. que esta zona nunca deixou de ser habitada. Desde os fenícios aos visigodos, dos muçulmanos ao Reino de Portugal, uma carteira de gerações plantou a sua marca no solo. As escavações nesta unidade hoteleira deram novamente vida a uma casa romana, em que se acredita que os proprietários estavam bem posicionados nos negócios comerciais. Bem preservados estão os mosaicos originais onde no centro da sala ainda se consegue ver a Vénus a descalçar a sandália, símbolo mítico romano.
Curiosamente, o rio Tejo estava a paredes meias com a zona onde o hotel se localiza, separada por uma muralha do século IV d.C., a Cerca moura. “Esta escavação veio dar a certeza que afinal não era moura, era romana. Portanto ela é romana e moura”, refere Inês, ao apontar para parte da muralha, que serve de parede do bar do hotel Eurostars Museum. Noutra intervenção que está conservada nesta unidade hoteleira e que pode ser visitada mediante marcação, existe uma “rua romana com fonte de água, um poço e uma praça pública, que depois foi transformada num edifício dentro de um palácio do século XVI”, conta Inês.
Mais tarde, o palácio que pertencia aos condes de Linhares passou para os condes de Coculim. Mas com o trágico terramoto de 1755 e consequentes incêndios, décadas mais tarde veio pertencer à família Sommer, em 1858, ascendente da família Champalimoud. “(A Sommer e Companhia) tinha aqui o armazém, onde estamos, que era de carvão, de ferro, de matérias pesadas” afirma Raquel, que acrescenta “isto já foi um mundo de gente que viveu neste espaço. Já teve tascas e inclusive um talho, que tinha um cartaz que afirmava que eram os primeiros importadores de carne conservada a frio e não a sal”. Depois da saída da empresa, o espaço passou a ser o escritório da empresa Cimentos de Leiria, até 1975.
Para Inês, um segredo que adora contar sobre a cidade passa por casas de banhos públicas, mas não umas quaisquer. As instalações sanitárias da Sé de Lisboa escondem um segredo que o comum turista ou residente em Lisboa pode não saber. Inês solta uma gargalhada ao contar a curiosidade: “Eu adoro contar esta porque ninguém está à espera e nós dizemos “agora vamos todos à casa de banho”. E depois lá dentro temos o interior de uma casa do século XVI que foi destruída pelo terramoto de 1755! Portanto, é lindíssimo!”.
O que diferencia um guia turístico de um arqueólogo é o conhecimento que este último tem sobre determinados pormenores e que se mantém atualizado, explica Raquel. Além disso, na opinião das duas, os arqueólogos conseguem “pegar numa parede velha e contar uma história”.