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Ouvir além do som

Aprendemos a gostar de música porque a podemos ouvir, tão naturalmente como qualquer outra coisa. Mas ninguém nos ensina a melodia do movimento – arte que os surdos já dominam desde sempre, e estão de braços abertos para partilhar. Mariana Teixeira e Silva, mestre em Antropologia pela NOVA FCSH, aceitou a proposta. O resultado foi  “O Som dos Gestos”, a sua dissertação de mestrado.

A música está em todo o lado. Cláudia Dias encontra-a nas ondas do mar, no seu rebentar, na espuma contra a areia. No abanar das folhas das árvores, quando o vento sopra por entre elas. Até no voar dos pássaros, no ritmo do bater das asas. “Nasci surda profunda, mas sempre amei música, ainda que de outra forma.”

Portugal não foi a primeira casa de Cláudia. Pouco depois do seu nascimento, em Angola, foi com a família viver para o Connecticut, nos EUA. Aos 11 anos regressou a Portugal e trouxe consigo o gesto que adotou para o seu nome – a mão direita curvada em forma de C, colocada em frente aos lábios num abanar ligeiro. “Nos Estados Unidos, o gesto costuma ser o correspondente à inicial do nome. Em Portugal, parte mais de características físicas da pessoa, como o cabelo ou um sinal no rosto. A minha particularidade é ser muito faladora, então o meu gesto é uma fusão das duas línguas”, explica Cláudia.

Ensina Língua Gestual Portuguesa (LGP) há vinte anos, tanto a ouvintes como a não-ouvintes, e é uma das integrantes originais do grupo “Mãos que Cantam”, um coro composto exclusivamente por coralistas surdos. O projeto foi criado em 2010 na Universidade Católica Portuguesa. O coro “nasceu da ideia de que os surdos não devem ser vistos como deficientes mas como seres plenos com uma modalidade de expressão biologicamente diferenciada das pessoas que ouvem”, lê-se no website. Os coralistas fazem deste o seu lema.

Ao longo dos seus dez anos de atividade, o coro captou a atenção de muitos. Os centros de investigação orientados para estudos sobre surdos, como é o caso do CIIE – Centro de Investigação e Intervenção Educativas, são os primeiros a reconhecer e elogiar o valor que o grupo tem no âmbito da expressão artística para surdos. Também o programa PARTIS, criado pela Fundação Calouste Gulbenkian, promoveu o Mãos que Cantam como um dos projetos que recorre à arte como meio de intervenção social. Foi depois de descobrir o PARTIS, durante a sua pesquisa para a dissertação de mestrado em Antropologia “O Som dos Gestos”, que Mariana Teixeira e Silva se aventurou neste universo. “Portugal não tem praticamente nada feito na área da música, o que é de espantar, tendo em conta que as restantes são tão trabalhadas. Por que não?”, pergunta Mariana. 

De facto, muitos ainda estranham quando ouvem as palavras “coro” e “surdos” na mesma frase. Após ter trabalhado durante vários dias com o Mãos que Cantam, Mariana explica esta admiração: “Como não há estudos, não há informação sobre isto. As pessoas não entenderam ainda que a música não é feita apenas para o ouvido e, por isso, não é interdita às pessoas com surdez”.  A falta de consciencialização é ainda um problema para os surdos, que, todos os dias, são confrontados com a pouca compreensão por parte dos ouvintes. “A sua voz está nas suas mãos”, esclarece Mariana, na dissertação.

Foi durante a universidade que Sofia Figueiredo, que tinha então travado amizade com os colegas surdos, se apaixonou pela LGP, área na qual depois se veio a licenciar. Até aí, Sofia nunca tinha tido contacto com a língua – aprendeu-a como quem aprende inglês, francês ou alemão.

Aquilo que Mariana Silva observa, Sofia confirma. “Se percebermos o quanto a música mexe com a nossa estrutura, em termos químicos, conseguimos perceber e aceitar que os surdos também acedem à música.” O problema, no entanto, não é biológico mas ideológico – e, sobretudo, nacional. Na APS – Associação Portuguesa de Surdos, Sofia percebeu que algo que todos os seus colegas queriam muito era que o Festival da Canção fosse traduzido para LGP. “Em Portugal não temos tradição disso. Mandámos imensos emails à RTP a solicitar, mas só foi possível em 2018.” Sofia foi uma das intérpretes.

Hoje, o seu rosto já é conhecido para aqueles que, diariamente, assistem ao comunicado oficial da DGS sobre os dados mais recentes da Covid-19. Sofia interpreta um pouco de tudo – até aulas de código, tarefa da qual não é particularmente fã. Contudo, a música tem um lugar especial no seu coração. “Faz parte de nós, criamos com ela uma relação natural – está sempre associada a memórias pessoais, históricas até. Um surdo pode nunca ter ouvido Zeca Afonso, mas sabe que os pais o ouviram no 25 de Abril e percebem  que a música é símbolo de liberdade.”

Os que, por serem mais novos, não recordam em primeira pessoa a Revolução de Abril beneficiaram de um novo sistema de ensino, mais especializado e focado nas necessidades dos não ouvintes. Ainda assim, esta reforma só aconteceu em 1997. Ainda que tenha passado a juventude a um oceano de distância de Portugal, Cláudia está consciente dos problemas provocados pelas décadas de métodos de ensino desadequados no país: “O ensino era muito baseado na oralização, o que trouxe um grande prejuízo para os surdos. Não liam bem porque estavam mais focados em oralizar e, se não percebiam o que estavam a ler ou a dizer, não eram senão papagaios”. Em 1997, a LGP foi reconhecida pela constituição da República Portuguesa, o que reformulou o ensino. Este reconhecimento tardio, no entanto, é um dos motivos que levam a que, 23 anos depois, ainda haja altas barreiras impostas aos surdos no acesso a oportunidades musicais.

As comunidades de jovens são uma das grandes forças dedicadas à luta pela igualdade de acesso a bens culturais e artísticos. É o caso de Bruna Neto, que, aos 20 anos, tem já um canal de Youtube de sucesso, onde faz vídeos a interpretar músicas pop para aqueles que, como ela, não podem ouvi-las na rádio. Basta passar uns minutos com os vídeos de Bruna para perceber que adora Demi Lovato – a artista foi, inclusive, a grande inspiração para o projeto que veio a desenvolver. “Já costumava traduzir música sozinha, mas sempre tive receio em mostrá-lo pois não sabia como ia ser o feedback. Quando a Demi lançou a “Sober”, que considero uma das melhores músicas dela, decidi que era o momento e criei o canal”, conta.

Bruna avançou com o projeto, mas o receio pairava ainda sobre os seus pensamentos. Afinal, youtubers surdos a interpretar canções ainda é algo que não se vê todos os dias, em Portugal – aliás, este trabalho de tradução é frequentemente feito por intérpretes e não por surdos. Bruna decidiu dar o primeiro passo e criar o canal, que vê como uma comunidade onde todos – ouvintes e não ouvintes – são bem-vindos.

Integra também a Comissão Nacional de Juventude Surda (CNJS), composta apenas por cinco jovens. Não podendo dar voz, Bruna dá rosto à sensibilização para os obstáculos que a comunidade surda ainda encontra. “As pessoas ouvintes chegam à conclusão de que quem não ouve não desfruta de música, mas não é bem assim. Esse é um dos problemas, chegar a conclusões sem procurar saber primeiro”, explica.

A emoção da música está na expressão facial, e os vídeos de Bruna deixam isso claro. Mesmo se não viessem acompanhados pela faixa original das canções que a jovem interpreta, o sentimento que a música carrega já é denunciado pelo seu rosto. “A palavra gestual já tem uma grande carga emocional, mas se usarmos todo o nosso corpo a emoção ainda sai mais”, explica a intérprete Sofia que, aliás, já trabalhou com Bruna, quando a jovem foi convidada para o programa SÓQNÃO, em Outubro.

Sofia também integra o Mãos que Cantam. Ela e o maestro, Sérgio Peixoto, são os únicos membros ouvintes do grupo. Cláudia recorda a primeira vez que o maestro se dirigiu ao coro. “Foi a primeira vez que ele interagiu com um coro de surdos. Não tinha conhecimentos nenhuns de LGP. Nós fomos muito flexíveis, porque quem cresce com o hábito de interagir com ouvintes consegue ter essa adaptabilidade. Já com os ouvintes é o oposto, há muita estranheza, e o Sérgio passou precisamente por isso.” A experiência foi uma espécie de troca de papéis que, ao fim de um tempo, permitiu que ambas as partes, ouvintes e não ouvintes, se tornassem uma só: um coro, que, até a data, já atuou no Porto, no Algarve e até na Madeira e nos Açores. 

Trabalham, muitas vezes, com coros ouvintes, pelo que as plateias são sempre mistas. “O objetivo é que a música surda possa estar envolvida com a música ouvinte, porque o contrário nunca acontece. Aliás, nos concertos ao vivo o intérprete nunca está bem à vista, para não roubar protagonismo aos artistas. Os surdos, para terem visibilidade do intérprete, têm que ficar em lugares isolados”, explica. A “culpa”, diz Sofia, passa pelos artistas. “Ainda acham isto tudo muito estranho. Mesmo os que disponibilizam bilhetes para surdos, acabam por isolá-los. É normal que não haja afluência e que os surdos criem iniciativas à parte, deles para eles.”

Ainda que os grupos musicais de surdos sejam escassos, o reportório é sempre riquíssimo – desde a música medieval à música modernista, passando pelo pop e pelo fado. Uma das peças preferidas entre os integrantes é o tema “Com Que Voz”, da fadista Amália, que Cláudia destacou como um dos que mais gostou de cantar até hoje. O processo de interpretação, é, no entanto, mais complexo do que aparenta, sobretudo na música portuguesa. “Temos que ter em conta como é que podemos traduzir sem desvirtuar a emoção. Na televisão, muitas vezes fazem uma interpretação literal. No coro já é possível ser mais pensada. As músicas em português têm muito da cultura portuguesa – metáforas, provérbios –,  e tem que se ter isso em atenção”, diz Sofia.

Além da letra, todos os outros aspetos da expressão musical são considerados. O instrumento, por exemplo, também pode ser interpretado: “Se está a tocar uma guitarra, fazemos gestos de guitarra, e assim adiante”. O detalhe vai até às particularidades do artista que, originalmente, canta a canção – expressão facial,  sotaque, tiques. Tudo isto pode e deve ser interpretado. Cláudia acredita que o país devia ter mais intérpretes. “Em Portugal nunca há dinheiro para mais intérpretes na televisão. Claro que estes profissionais não vivem do nada, precisam de ser pagos, mas é uma grande barreira”, alerta. Por outro lado, os ouvintes também não têm vontade de aprender LGP. “Por que não serem também os ouvintes a aproximar-se da nossa língua? Vão à APS, vejam pessoas surdas, ouçam o som e observem o movimento. Logo aí, já é um passo dado em direção a um meio termo, para tentar perceber a nossa dinâmica”, afirma. Cláudia lança o apelo e Sofia remata: “Nós, ouvintes, estamos muito contaminados pelo auditivo porque nos é acessível. Temos muito a aprender com as pessoas surdas, nomeadamente a comunicar”.

Laura Carvalho

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