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“Sabemos que o nosso trabalho é reconhecido pelos outros”

Ana Rita Rocha, investigadora no Instituto de Estudos Medievais (IEM) da NOVA FCSH, é a vencedora do prémio A. de Almeida Fernandes de 2021, dedicado a trabalhos sobre a História Medieval Portuguesa. A tese de doutoramento sobre assistência aos pobres e doentes em Coimbra revela contornos importantes para a investigação medieval.

Mais de 700 documentos, 85 instituições de caridade assinaladas em Coimbra entre o século XII e início do século XVI e nove meses depois de recolha e investigação na Torre do Tombo, Ana Rita Rocha escreveu a dissertação de doutoramento (2019) que lhe valeu o prémio A. de Almeida Fernandes.

Conhecer estas instituições de assistência na Idade Medieval é importante para descobrir como é que os pobres e os doentes eram tratados, mas também para compreender a transição de certas práticas da Idade Média para a Idade Moderna. Tudo começa com a “revolução da caridade” entre os séculos XI e XII, incentivada pela Igreja para ajudar os pobres e os doentes.

Como o pobre tinha sofrido em vida, as portas do céu estavam prontas para o receber, enquanto que, para os mais ricos, o caminho não era tão acessível. Então, “como meio de atingir a salvação eterna”, o pobre transformou-se no intermediário para entrar no Jardim Eterno e os bens deixados depois da morte asseguravam esta salvação. A Igreja garantia o passaporte.

E tudo ficava por escrito, em testamentos: “Recolhi de facto vários testamentos de pessoas que deixavam [os bens], era uma prática recorrente deixar aos filhos, aos familiares, à igreja, mas depois deixar àqueles que nada tinham”, explica Ana Rita. E esta revolução deu origem ao aumento de instituições, hoje analisadas na cidade de Coimbra por Ana Rita. Estas instituições podiam ser retrosarias, albergarias, gafarias – hospitais para os leprosos –, ou mesmo os próprios hospitais, embora com funções diferentes das que hoje se aplicam nestas instituições.

“Os hospitais destinavam-se sobretudo a pobres”, começa por explicar, “são instituições para acolher duas, três noites se tanto, são sobretudo pobres errantes ou viajantes, peregrinos que precisam de ter onde se acolher e era dado sobretudo alimentação, algum conforto”. Nos documentos à época, a investigadora refere que o fogo é comumente citado, na ideia de que é necessário para o aquecimento e para a alimentação. “Não tanto, lá está, esta ideia da cura e do tratamento dos doentes como depois começa a ser mais frequente a partir do século XVI”, aponta.

Consultar a documentação medieval é quase como descobrir um novo mundo e assistir ao decorrer da História (quase) em tempo real. Ana Rita, nos nove meses que passou na Torre do Tombo, conseguiu perceber que algumas destas instituições eram fundadas pelo poder régio, bem identificadas, e que, apesar de existir pouca documentação, conseguiu acompanhá-las até ao seu encerramento. Nas instituições particulares, as que ficavam em testamento, o caso mudava de figura. Era quase um golpe de sorte assinalá-las ou perceber quando desistiram da sua patente: “Às vezes identifico-as apenas na descrição, na confrontação, naquele dia exato, e nunca mais as encontro”, perdidas no tempo e no espaço.

Mas porquê este tema para a investigação em doutoramento? Ao longo dos anos, vários investigadores da cidade medieval de Coimbra têm vindo a estudar várias vertentes, “a mim calhou-me a assistência aos pobres e aos doentes, em boa hora continuo a dizê-lo”, abre um sorriso quando explica. Mas nada é por acaso. A sua dissertação de mestrado (2011) incidiu sobre a institucionalização dos leprosos, em particular no Hospital de S. Lázaro, em Coimbra, nos séculos XIII a XV, documentação que esteve à espera dos olhos de Ana Rita.

O interesse pela lepra na Idade Média e a destruição de mitos

A tese de doutoramento começou onde a de mestrado terminou: Ana Rita já tinha um estudo bem definido em Coimbra “e depois o percurso lógico era alargar a todas as instituições de assistência e a toda a caridade praticada no mesmo espaço urbano, numa cronologia também longa”, refere.

O interesse sobre as gafarias (hospitais de leprosos) como instituições de assistência começou ainda na licenciatura, num seminário. Aquela que mais tarde iria ser a orientadora, Maria Helena da Cruz Coelho, perguntou-lhe se não queria fazer um trabalho sobre a lepra. A documentação sobre este assunto no arquivo da Universidade de Coimbra estava à espera de alguém. E esse alguém foi Ana Rita que, depois dessa primeira investigação, ficou fascinada. E o tema saltou para o mestrado.

“A lepra é uma doença dermatológica, uma infeção por bactéria, que só foi descoberta no século XIX. A lepra tem cura atualmente através de uma combinação de antibióticos, mas na Idade Média tinha sobretudo uma visão muito simbólica”, explica. O contágio desta doença acontece através do contacto de longa duração e as marcas que deixa no corpo começaram a ser associada ao pecado, devido a um erro de tradução da Bíblia, do judaico para o grego.

Mas apesar dessa associação e do estigma que se criou em torno do leproso começou a desmoronar-se quando se analisaram os documentos da época. A imagem de que todos os leprosos eram ignorados pela sociedade não é verdadeira. E os documentos provam-no, separando-os em três tipos: os que eram pobres e, por isso, marginalizados; os leprosos que estavam nas gafarias, que para entrarem na instituição tinham de oferecer uma parte dos seus bens; e os leprosos ricos, que conseguiam ser tratados em casa.

O mais curioso é que os próprios leprosos chegavam a ser marginalizadospelos seus semelhantes, conta Ana Rita: “No Porto há casos de leprosos, os Lázaros Errantes, que eram expulsos da cidade pelos leprosos que estavam na gafaria. São realmente exemplos únicos e que mostram esta certa ambiguidade”.

Outro dado curioso é a questão da dieta dos leprosos e dos tipos de alívio utilizados para o tratamento da doença. Na gafaria de Coimbra, por exemplo, a investigadora analisou um regimento de 1329 que discriminava a dieta dos doentes: muito pão, muito vinho “porque não havia praticamente água potável e o vinho servia essencialmente para saciar”, legumes, frutas, e alimentos que se ajustavam, entre outros, ao calendário agrícola e litúrgico. Para o alívio das feridas, a investigadora parte do princípio de que o mel que lhes era dado servia, também, como unguento. Assim, a alimentação tinha uma dupla função, a de tratar e de curar, dado que não existia solução para a doença.

Ana Rita é atualmente investigadora no Instituto de Estudos Medievais (IEM) da NOVA FCSH e é bolseira de investigação no projeto Vinculum, vencedor de uma bolsa Consolidator do European Research Council (ERC) no valor de 1.6 milhões de euros, encabeçado por Maria de Lurdes Rosa, também investigadora do IEM e docente na NOVA FCSH. Ana Rita está, desde julho de 2019, a fazer investigação documental sobre vínculos, morgados e capelas entre os séculos XIV e XVII.

Mas, como é que surgiu o interesse pela História e pelo universo da Idade Média? Desde pequena que o gosto estava escondido e foi revelando-se ao longo dos anos.

O interesse pela História Medieval e o prémio A. de Almeida Fernandes

“Sei que tinha gosto desde pequena, não tinha era noção que queria ser historiadora e depois do sétimo ano tive mesmo a certeza”. Ana Rita recorda os tempos em que sabia que o gosto pela História residia no seu íntimo, mas ainda não o tinha descoberto.

Desde pequena que as páginas de História e de Estudo do Meio a prendiam na primária. Não sabia o porquê. Hoje, tudo faz sentido: “Agora sei e um bocadinho aquele fascínio pelos mosteiros, o da Batalha, o de Alcobaça, também sem saber bem porquê, mas já lá estaria o gosto [risos] e depois a partir do sétimo ano, foi sempre até à universidade, foi sempre a História”, conta com um grande sorriso.

Ana Rita Rocha é natural de Aveiro, mas foi em Coimbra que encontrou todo o seu percurso desde a licenciatura até ao doutoramento. Ainda fez um primeiro ano na licenciatura em Turismo, por receio do futuro na área da História, mas não era o que a desafiava. “Mudei de curso e não me arrependo nem um bocadinho”, ri-se.

Não sabe explicar o que a cativa na época medieval, mas desde a licenciatura que o seu interesse foi afunilando para unidades curriculares sobre o assunto. “Há qualquer coisa que os mosteiros, a época feudal – mesmo que não tenhamos muito desse tempo em Portugal –, o que nos era ensinado… qualquer fascínio, não sei (risos)”.

E todas estas escolhas encaminharam-na para o prémio A. de Almeida Fernandes, o reconhecimento de todo o esforço e trabalho ao longo dos anos: “Sabemos que o nosso trabalho vale alguma coisa e que é reconhecido pelos outros e que tem utilidade para a historiografia, acho que é o nosso grande objetivo, como historiadores. Saber que fizemos alguma coisa bem!”, diz com um brilho nos olhos.

A investigação é um trabalho solitário, moroso e com obstáculos pelo caminho. Mas receber o único prémio de História Medieval Portuguesa é, para Ana Rita, o reconhecimento de toda a dedicação e horas na Torre do Tombo e na secretária a escrever. Este prémio, no valor de 2.500 euros, é fruto do protocolo de colaboração entre o Município de Viseu e de Ponte de Lima para homenagear Armando de Almeida Fernandes, desaparecido em 2002, e um dos mais prestigiados investigadores historiadores da História Medieval Portuguesa.

Ana Sofia Paiva

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