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Dos Açores para Cannes: o realizador que procura a estética da natureza

É o segundo português a integrar a residência Cinèfoundation de Cannes, em Paris, e está incluído na lista dos dez “Próximos Jovens Realizadores” da Academia Europeia de Cinema e nos “Dez Novos Realizadores a Seguir” pela European Film Promotion. Depois de duas curtas-metragens, David Pinheiro Vicente, da Ilha Terceira para o mundo, prepara-se agora para escrever a primeira longa metragem.

“Nunca pensei que as histórias que vamos contando da nossa infância, do nosso registo vinguem, e que fossem um catalisador para isso e apropriadas por ele”. As palavras são de Fernando Vicente, pai de David Pinheiro Vicente, que conta entusiasmado quando percebeu que a segunda curta-metragem de David tinha sido inspirada nas histórias que o pai lhe contava quando era mais pequeno.

O Cordeiro de Deus” (2020) é a segunda curta-metragem do jovem realizador, passada na Soalheira, uma vila no coração da Beira Interior, no concelho do Fundão. A curta esteve entre as 11 finalistas do Festival de Cannes, em 2020, e é o produto de uma coprodução luso-francesa entre a Artificial Humors e a Belle Affaire Productions. Ainda nesse ano, o canal Arte France adquirido os direitos da curta para ser exibida em televisão e nos canais online.

Mas esta não foi a estreia de David Pinheiro Vicente nos festivais. O jovem, de 24 anos, aluno de Mestrado em Estética e Estudos Artísticos na NOVA FCSH, viu o trabalho de final de licenciatura em Cinema e Estética, na Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC), em mais de 40 festivais internacionais. “Onde o Verão Vai (Episódios da Juventude)”  estreou-se mundialmente em 2018, no festival de cinema de Berlim, na competição Berlinale Shorts.

“Foi uma sugestão de um amigo que enviasse o filme para alguns festivais e o primeiro era esse. E nós não estávamos à espera sequer de uma resposta” e, no virar de um e-mail, chegou a decisão e a viagem até Berlim, conta David: “Claro que é uma aprendizagem por si só ter estado lá, ver que o nosso trabalho foi visto e comentado já num local muito profissional e poder contactar com outras pessoas”, mas, continua o jovem realizador, “ao mesmo tempo poder falar com elas, ver a forma como organizam, como escolhem, isso foi muito bom”.

David Pinheiro Vicente no Festival da Vila do Conde, em 2018. Créditos: David Pinheiro Vicente

E a ideia para a curta-metragem partiu de um poema de Emily Dickinson, explica o realizador: “Esse foi um acaso feliz porque aqueles poemas publicados – e que penso que é uma edição da Assírio & Alvim, que se chama «Esta é a minha carta ao mundo» – foram traduzidos pela minha tia e madrinha, e ela deu-me um exemplar desse livro”. Um poema particular era sobre a Bíblia e foi a inspiração para dar continuidade aos pensamentos e ideias que David já conjeturava no seu pensamento. Daí para a realização foi apenas um salto.

A curta foi gravada em Sintra mas, quem a vê, não percebe que está nesse recanto escondido da vila. Pelo contrário, há um misticismo de paraíso, de Éden, onde a cobra também faz parte do imaginário. “Quando vejo o filme – volta e meio vejo-o – vou percebendo algumas coisas que antes não entendia”, aponta Miguel Cosme, ator principal das duas produções de David. “Por acaso ele tem isso, dos filmes que eu vi vou descobrindo coisas novas” porque “não acontece em todos os filmes, acontece em muitos, mas não acontece em todos”.

Miguel Cosme acompanhou David em Cannes, em conjunto com a restante equipa. A colaboração entre os dois aconteceu na ESTC, palco para os contactos e sinergias que ainda hoje se mantêm. “Acho que ele curtiu da minha pinta, olhou para mim e viu uma pessoa que ele quer e eu fico grato por isso”, diz Miguel.

Depois do sucesso de “Onde o Verão Vai”, seguiu-se “O Cordeiro de Deus”, uma curta mais séria a nível de financiamento, com o mesmo tom bíblico, mas com cenário diferente. David deixou São Mateus da Calheta, na Ilha Terceira, para estudar em Lisboa. Mas foi na Soalheira que as histórias ganharam vida.

A porção de terra rodeada de água por todos os lados

Onde acaba o mar e começa a terra, São Mateus da Calheta, perto de Angra do Heroísmo, na Ilha Terceira (Açores) foi, até à década de 1970, uma zona dedicada à herança baleeira. Na zona balnear do Negrito foi colocada uma armação baleeira e construída uma fábrica de produtos que derivavam dos cetáceos. Ainda antes, a costa de São Mateus da Calheta foi palco de ataques e pilhagens de piratas e corsários por ter um porto fácil de atracar. Para melhorar a segurança, foram erguidos fortes como o Forte da Maré, o da Má Ferramento, o Forte do Negrito, entre outros. Memórias quase inexistentes hoje em dia.

Neste ambiente de história e de imaginário piscatório, nasceu David Pinheiro Vicente e o seu irmão gémeo. Até aos 18 anos, David viveu nesta porção de terra rodeada de água por todos os lados, que adora e na qual se refugia quando consegue esse tempo livre. Saiu da ilha para estudar cinema no continente, mas o inverso aconteceu com o pai, Fernando Vicente.

Do profundo interior de Portugal continental, na vila da Soalheira, no concelho do Fundão, Fernando viveu até aos 18 anos, na terra que o viu nascer. Saiu para estudar Filosofia nos Açores e foi lá que conheceu a mãe dos seus filhos, no mesmo curso. Ambos são formados na área e professores. Desde 1985 que Fernando adotou os Açores como sua casa, a casa que viu nascer o filho realizador.“Eu tive a sorte de estar numa casa onde éramos muito incentivados a experimentar coisas e a tentar conhecer coisas. Eles [os pais] é que sempre sugeriram ter hobbies diferentes e mesmo outras coisas fora, como desporto, cursos de fotografia”, conta David.

“Sempre fomos grandes consumidores de cinema, em casa. E claro, ele acompanhava isso juntamente com o irmão e com a família”, recorda o pai. A liberdade para pensar, para ver o mundo e refletir sobre ele foram uma das estratégias educativas dos pais de David. Nas viagens em família, visitavam vários museus e “havia essa nossa preocupação de mostrar, de lhes dar a conhecer outro mundo, outras realidades. Uma delas era essa criação artística, esse lado da construção humana para uma subjetividade própria”, comenta Fernando.

Talvez a maneira como David vê o mundo seja pautada pela estética da natureza, que depois se reflete no foco que dá ao trabalho que está a desenvolver. David é disciplinado, perfecionista e, acima de tudo, gosta do que faz, conta Duarte Coimbra, amigo e também realizador com quem partilha casa, em Lisboa. Se David quer perceber algo, vai até ao fundo da questão: “É muito mais do que um foco ou de estar muito concentrado, acho que é mesmo uma coisa que vem de um exercício quase de paixão, de olharmos para um objeto que gostamos muito, vê-lo, revê-lo para tentar encontrar a essência e a verdade das coisas”.

David Pinheiro Vicente é o segundo português a integrar a residência artística de Cannes. Créditos: David Pinheiro Vicente.

Duarte e David conheceram-se na licenciatura e partilham o gosto por inúmeras obras. Partilham também as derrotas e as vitórias, os projetos e uma amizade de muitos anos. Duarte também viu a sua curta “Amor Avenidas Novas” selecionado para Cannes, em 2018, e acaba de produzir “O filme feliz :)”. Para o realizador, David “é uma pessoa muito organizada, muito pragmática, metódica e eu sinto que não sou tão assim, mas sinto que ao observá-lo e ao perceber como ele faz as coisas consigo fazer com que isso seja uma coisa melhor na minha vida”.

As noites mal dormidas e as (quase) diretas a fazer trabalhos fazem parte da experiência académica. Nas longas horas de produção e maturação de trabalhos, Catarina Telo juntava-se a David e a Duarte. Juntos trabalhavam noite dentro, com algumas resmunguices dos vizinhos de David, casa onde se juntavam. Momentos de comunhão e partilha, recorda Duarte: “Nós íamos os três quase todos os dias da semana para a casa do David e ficávamos até às tantas [a fazer o trabalho]. Então as minhas melhores memórias com o David são nesse prédio, que era assim um prédio onde se ouvia tudo e mais alguma coisa, e de os vizinhos do David ficarem super chateados”.

Catarina Telo relembra esses bons momentos tem afirma o lado cómico do amigo: “O David é muito divertido! Eu lembro-me de uma coisa caricata que ele gostava de fazer, que eram as imitações dos nossos professores. Tínhamos professores muito característicos, num sentido cinéfilo, e ele fazia muito bem as caricaturas deles e imitava-os, as vozes, os maneirismos, e isso tinha sempre muita piada [risos]”, conta a amiga, hoje assistente de vídeo.

Mas quando se trata de estar concentrado no trabalho, David defende o seu papel de realizador. A situação mais caricata que aconteceu com Miguel Cosme foi na rodagem da primeira curta-metragem, onde o ator se juntou com uns amigos durante a pausa de uma das cenas: “Estava lá com uns amigos meus que também são danados para a ramboia e então começamos a fazer umas macacadas. E o David foi lá ter connosco e pediu-me para não fazer mais e foi caricato porque ele ficou assustadíssimo com o que estávamos a fazer”, solta uma gargalhada ao recordar.

David Pinheiro Vicente a realizar a curta-metragem “O Cordeiro de Deus” em 2019, na Soalheira. Créditos: David Pinheiro Vicente.

Mas esta seriedade no trabalho e perfecionismo vem de outros tempos: “O David é aquele aluno que todos os professores queriam ter”, diz o pai porque “ele tinha um percurso desde o básico até ao secundário que lhe permitia fazer as escolhas que ele quisesse”. Desde as ciências às humanidades, o realizador tinha capacidade para qualquer uma das áreas, mas no 10º ano decidiu enveredar por Artes. E os pais apoiaram-no e ajudaram-no a perceber o seu caminho no final do 12º ano.

Depois da licenciatura, David decidiu que estava na hora de seguir para o Mestrado em Estética e Estudo Artísticos na NOVA FCSH. Não foi surpreendente quando contou aos pais porque era evidente que o caminho de David só podia passar pela estética, dado que a obra do realizador tem-na no seu âmago e prima pela reflexão de determinados temas através dessa mesma estética.

Agora, com 24 anos, David é o segundo português a entrar na residência artística Cinèfondation de Cannes onde, até 15 de julho, vai poder partilhar o espaço com cinco outros jovens realizadores de diferentes partes do mundo. Antes dele, foi Nuno Baltasar, em 2016, a conseguir ir depois da curta-metragem “Doce Lar”. Esta residência é um espaço de partilha de conhecimento e de reflexão, onde David vai preparar o guião para a primeira-longa metragem, “A Casa do Vento”.

“No primeiro filme foi uma cobra, no segundo foi um cordeiro, e eu disse ao David: «No terceiro, exijo um tubarão!» [risos] Não exigi isso, mas exigi que houvesse outro animal”, graceja Miguel Cosme. Apesar de ainda não saber se vai participar na longa metragem, Miguel não esconde a estima pelo realizador e pelas oportunidades que lhe proporcionou ao longo dos anos.

David ainda não levanta a ponta do véu quanto ao próximo filme, mas afirma que “tem que ver sempre com essa questão de crescer, com essa identidade nacional também, é sempre uma coisa que me interessa, esses mitos portugueses, folclore português, a maneira como as pessoas vivem e pensam dessa forma”.

A residência é uma mão cheia de meses e David vai poder caminhar pela cidade de Paris, uma atividade que gosta e que o ajuda a inspirar-se e a refletir. Apesar dos constrangimentos provocados pela pandemia, Duarte e Catarina esperam poder visitá-lo no início do verão. E nada disto teria sido possível sem a história do cordeiro do interior de Portugal.

Cartaz d’”O Cordeiro de Deus”, onde Miguel Amorim é a personagem principal

O cordeiro Chico e a vida para além-fronteiras

Do interior de Portugal, no coração da Beira Interior, Fernando cresceu num ambiente duro e de trabalho na terra. A Soalheira é conhecida pelos seus rebanhos e pelo queijo, pelo clima árido no verão e gelado no inverno.

“Eu não gostava”, afirma com um sorriso David. “Claro que gostava de estar com a minha família, mas era difícil porque eu não estava habituado a estar naquele calor”, conta, a recordar os verões em que a família viajava até à Soalheira. Mas não era só o clima que era diferente. Tudo em volta o era: a agricultura, as mãos enrugadas dos trabalhadores do campo e as histórias que contavam antes do 25 de abril de 1974, a religiosidade como escape para a diversão dos mais jovens. Estas histórias e o ambiente diferente daquele em que vivia em São Mateus da Calheta foram o catalisador para tudo se ordenar em imagens em movimento.

A curta passa-se na antiga casa de Fernando, redecorada para as gravações: “É uma casa que está em ruínas, que está devoluta, mas foi giro ver os espaços e a forma como ele [David] os transformou e como deu a volta a um conjunto de histórias que lhe tinha contado”. E umas delas foi a do cordeiro, o Chico.

“Nós tínhamos uma ovelha”, começa por contar Fernando, “que tinha um cordeiro todos os anos”. E todos os anos esse cordeiro chamava-se Chico. Mas de um momento para o outro, o Chico desaparecia. “Então perguntávamos ao meu pai pelo Chico e ele respondia que tinha ido dado dar uma volta e passado oito dias tínhamos outro Chico mais pequenino”, relembra. O cordeiro não era o mesmo, mas o Chico sim. E essa foi uma das histórias que marcou David.

Fernando cresceu e viveu num ambiente onde matar os animais era normal. Para quem vive da pecuária e da agricultura é normal. Mas o seu pai, considera hoje, talvez quisesse aligeirar a dor da perceção do sacrifício do cordeiro.

Porém, o nome da curta não é só uma referência a essa história. Por curiosidade, é também o nome de uma música entoada nos coros de igreja. E esse facto não escapou à equipa de David durante as gravações, conta Miguel Amorim, personagem principal: “Abrimos os armários na Junta [de Freguesia da Soalheira] e fomos lá buscar um teclado e começamos a tocar e a cantar o Cordeiro de Deus e temos um vídeo disso. Só que pusemos o [tom de] acordeão no teclado e pronto”, desata a rir-me ao relembrar.

Esta curta-metragem levou à realização de vários sonhos, não só de David, mas daqueles que o rodeiam. Para Miguel, era “a única coisa que queria. Quando pensava em ser ator, pensava logo em Cannes”; para Duarte e Catarina, foi ver o amigo a crescer e a evoluir naquilo que de melhor sabe fazer; e para o pai, que viu a sua terra natal ser projetada em Cannes, foi “muito giro, porque é a minha terra, é o sítio onde nasci e do qual nós saímos, mas estamos sempre lá. Uma ausência sempre presente”.

Para David, apesar de ter sido um ano atípico, que coincidiu não só com a pandemia, mas também com ataques terroristas no país, “foi um festival muito curto, de poucos dias, mas foi bom. Porque lá está, é sempre bom conhecer as pessoas, não é tanto para estar ali a e ver os filmes, apesar de ter visto coisas que gostei, mas é mais a festa”, conta.

Para além disso, o realizador está incluído na lista dos dez “Próximos Jovens Realizadores” da Academia Europeia de Cinema e nos “Dez Novos Realizadores a Seguir” pela European Film Promotion. Agora, o caminho na profissão continua porque David é “um homem do mar ligado à terra”, personifica o pai, uma pessoa que tem a ilha e a terra da Soalheira nas veias. Tal como nos filmes do realizador, o final, esse, é em aberto, tal como a vida, que continua em cada um dos espetadores.

Ana Sofia Paiva

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