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A esgrima e a comunicação

Aos 11 anos, experimentou o seu primeiro treino da modalidade. No passado mês de Maio, com 20, Luana Dinis, aluna do 1º ano de Ciências da Comunicação, sagrou-se campeã nacional na categoria sénior feminina.

São 18h00 de uma quarta-feira normal na vida de Luana. A última aula do dia acabou cerca de 15 minutos antes. “Estou tão mal a Economia”, declara. Atravessa o portão da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e faz o caminho do costume. Dirige-se, a pé, para a estação de Entrecampos, onde apanha o comboio para a Damaia. Daí até à Escola E.B. 2,3 Secundária Dr. Azevedo Neves, sede da Academia de Esgrima João Gomes – Associação Desportiva, onde treina, ainda é relativamente longe para ir a pé, pelo que chama um Uber para lá chegar: “Um rapaz que treina comigo costuma dar-me boleia, mas ele hoje não pôde vir”.

Antes de se iniciar na esgrima, Luana praticou equitação. A mudança de modalidade fez-se no seguimento da sua primeira e última queda do cavalo. Apesar de não ter ficado com lesões consideráveis, os pais aconselharam-na a escolher outro desporto. Nesse mesmo dia, em casa, na televisão, estava a dar uma competição de esgrima e, a partir daí, ficou com “esse bichinho”.

Passado um ano, acabou por ir experimentar e foi-se deixando ficar. “Como era pequenina, aquilo era uma coisa ainda a brincar, não era nada sério”. Os treinos eram de duas horas, duas vezes por semana. Atualmente, às duas horas de treino diárias, soma-se ainda uma hora de condição física todas as manhãs, antes de entrar na faculdade.

São 19h10 quando chega ao local habitual do treino. No pequeno ginásio de paredes brancas da E.B. 2,3 Secundária Dr. Azevedo Neves estão cerca de 20 pessoas, num ambiente aparentemente calmo e descontraído, apesar de visualmente desordenado. “Quantos espadistas estão?”, pergunta o treinador. A esgrima como que se divide em três diferentes disciplinas, correspondentes às armas existentes na modalidade (florete, espada e sabre), cada uma com regras próprias. Luana está entre os cinco espadistas que se encontram no ginásio.

Após 10 minutos de aquecimento, vai equipar-se. Começa, então, o treino mais propriamente dito. O som dos painéis existentes nas paredes ouve-se sempre que um jogador toca com a arma no adversário. É um zumbido inconstante, mas persistente. A isto, juntam-se os barulhos constantes das armas a tocarem uma na outra. Depois de uns quantos assaltos com adversários diferentes, Luana e Luís terminam a jogada, tiram as máscaras e apertam as mãos.

Campeã Nacional aos 14 anos

“Não sei se sempre gostei [de esgrima] ou se aprendi a gostar, porque só ganhei essa noção um pouco mais tarde”, conta. “Aos nove anos, não temos muita noção do que queremos fazer ou de quais são os nossos objetivos para o futuro. Tu simplesmente fazes o que gostas naquele dia e amanhã, se acordares e vires que gostas, continuas a fazer.”

Luana começou a sentir alguma pressão por volta do 9º ano de escolaridade, quando surgiram os primeiros resultados significativos. Com 14 anos, venceu, pela primeira vez, o Campeonato Nacional de Esgrima, na categoria de Espada Feminina Cadetes. Percebeu que o trabalho e o esforço eram recompensados e assumiu que talvez se devesse dedicar “a sério” à modalidade. “Quando és mais pequeno, não vais ao treino com o intuito de treinar, vais simplesmente.”

Passou a treinar mais vezes por semana e, aos 15 anos, ganhou, pela segunda vez consecutiva, o Campeonato Nacional. No ano seguinte, foi convocada para um Campeonato da Europa (de cadetes) e atingiu o estatuto de atleta de alta competição. Começou, então, a receber um ordenado da Federação Portuguesa de Esgrima e a ter direito de ir ao Jamor treinar. “Sentes que já não estás a fazer aquilo de uma forma amadora e que já é uma coisa mais a sério”, diz.

As pessoas começaram a dar atenção ao seu trabalho enquanto desportista aquando da sua ida ao Campeonato da Europa: “Sentes que as pessoas reparam em ti e é muito bom quando as pessoas reparam sem que tu precises de dizer”, conta. “Reconhecem que tu trabalhas mesmo e que mereces esse valor e mereces ir lá fora representar Portugal. É uma experiência muito boa.”

Lesionou-se na pré-época do Campeonato, a fazer sprints – “Lembro-me que estiquei demasiado a perna e rasguei a virilha”, conta. Recorda essa altura como “uma época um bocado má”. Ficou três meses sem treinar e, quando voltou, sentiu que “os outros já estavam num nível muito mais à frente” e que tinha de treinar ainda mais.

“Sinto que [os resultados] me afetam mais quando não são positivos. Quando corre mal, fico mesmo triste, porque, às vezes, tu tens de fazer escolhas, e no secundário, eu não sofria muito isso na pele, mas na faculdade já tens de pôr mais coisas de parte.”

Quando foi apurada para o Campeonato do Mundo, estava empatada com outra rapariga: quem tivesse melhor prestação na prova seguinte seria, então, a convocada. Luana recorda as palavras do treinador: “Treinaste até agora. O que treinaste ninguém te vai tirar, por isso, tens de estar confiante no que fizeste.”

Antes de jogar, sente sempre “aquele friozinho na barriga”, quer seja na “competição mais pequenina que há em Portugal”, quer seja na “maior competição que há lá fora”, mas quando começa a jogar, acaba por passar.

“És baixinha, assim é mais fácil”

O treinador, João Gomes, que participou duas vezes nos Jogos Olímpicos, caracteriza Luana como uma atleta determinada e disciplinada, considerando que, “às vezes, o que lhe falta é um bocado de confiança”. A altura da atleta é uma desvantagem: “É uma atleta baixa, em termos de estatura, para a arma que está a praticar”. Apesar disso, pode-se “adaptar o jogo para que o ser baixo se torne uma vantagem”, e é aí que entra João Gomes. É algo “complicado, que demora o seu tempo”, mas que crê que “já está a melhorar e tem tudo para melhorar ainda mais”.

Luís Alvito, 23 anos, que treina regularmente com a esgrimista, conta que “é sempre bom trabalhar com ela, porque é uma pessoa que está sempre com novos objetivos”. Caracteriza-a como uma desportista “competitiva e aguerrida a jogar”, o que é muito bom para o nível e competitividade do desporto. “Sempre foi boa desportista e nunca tive problemas nenhuns [com ela] nem em provas nem aqui”.

A altura de Luana é, também, um aspeto apontado por Luís: “Às vezes brincamos com ela, dizemos-lhe «Luana, és baixinha, assim é mais fácil»”. Fora da pista, não tem nenhum defeito a apontar-lhe: “É uma pessoa ótima a nível de ambiente, o que também é bom para o treino em si. Dá gosto vir treinar.”

A esgrimista nunca pensou em desistir, mas já teve fases “mais complicadas” em que ponderou se valia a pena continuar a dedicar-se tanto ao desporto, ou se devia aplicar-se mais à escola, ficando a esgrima “mais como uma atividade de lazer e de distração, em vez de uma prioridade a tempo inteiro”. Aí, a paixão “falou mais alto”. O pai, especialmente, foi um grande apoio. “É nas adversidades que tu te destacas”, dizia-lhe. Luana confirma: “E por acaso é verdade, foi mesmo”.

No 11º ano de escolaridade, o seu estatuto de atleta de alta competição tinha expirado. Isso implicou que deixasse de receber ordenado e de ter direito a tudo aquilo que um atleta de alta competição tem, incluindo uma bolsa de acesso à faculdade. Para renovar esse estatuto, tinha de participar num Campeonato da Europa ou do Mundo e obter um resultado em que ficasse no primeiro terço da tabela de entre todos os participantes.

No ano seguinte, marcou presença no Campeonato do Mundo, em Verona, Itália: “Foi mesmo a competição da minha vida”, afirma. Renovou, neste campeonato, o estatuto, o que lhe permitiu voltar a receber um ordenado da Federação e uma bolsa de acesso à faculdade. Ingressou, desta forma, em Ciências da Comunicação, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, a sua primeira opção.

“O treinador é a nossa Bimby”

A esgrima moldou, inevitavelmente, a personalidade de Luana: “Por algumas más experiências que tive, percebi que não era naquele tipo de pessoa que me queria tornar”. Afirma ter ganhado maturidade e crescido “um bocado mais rápido nesse sentido”, em comparação com uma pessoa “que não tenha feito desporto ou não tenha estado num ambiente em que há mesmo pessoas que te fazem coisas por maldade”.

A modalidade tirou-lhe tempo mas, em contrapartida, deu-lhe viagens, aventuras e pessoas que diz serem “para a vida”. Aos 15 anos de idade, considerava “o fim do mundo” não ir sair com os amigos. “Agora olho para trás e ainda bem que foi assim, porque se calhar aquilo não me ia acrescentar nada e a esgrima acrescentou-me muito mais do que isso me iria acrescentar”, reconhece.

“A esgrima, em Portugal, é uma modalidade que não é muito desenvolvida, não temos muitas condições”, explicita, ao falar das suas ambições para o Campeonato do Mundo: “O meu objetivo pessoal é passar as poules, que é a fase de grupos. Não sou propriamente uma atleta italiana ou russa que vai lá com o objetivo de ganhar”. Sublinha que se conseguir passar essa fase e renovar, de novo, o estatuto de atleta de alta competição, é “uma prova boa”.

No Mundial de 2018, decisivo para renovar o seu estatuto de atleta de alta competição, abriu o pulso dez minutos antes de a prova começar. Foi assistida pela fisioterapeuta italiana. Nos campeonatos internacionais, em oposição às extensas comitivas de países como Itália, os esgrimistas portugueses, normalmente, são acompanhados apenas pelo treinador: “O treinador é a nossa Bimby”, diz, entre risos.

“Tinha tudo contra mim”, declara. Havia calhado na fase de grupos número 1, o que significava que iria disputar a vitória contra a campeã do Mundo e a campeã da Europa. Apesar disso, afirma não sentir grande “pressão” neste tipo de situações; sente apenas um ambiente de competição saudável: “Estamos ali todos para o mesmo, queremos todos ter bons resultados.”

Recebeu, recentemente, uma proposta da Federação Dinamarquesa de Esgrima para ir estudar e dar aulas da modalidade num clube dinamarquês, mas acabou por recusar. Nunca se imaginou como treinadora, apenas como atleta.

Vê-se a continuar na esgrima, mas apenas como passatempo. Este é o seu último ano como júnior, sendo que, no próximo ano compete já como sénior e, nesse escalão, a dedicação tem de ser a 100 por cento, explica. Pretende ter uma vida profissional em “algo relacionado com marketing”, apesar de afirmar estar ainda “um bocado à descoberta”.

“Fazem só mais um jogo e acabou”, diz o treinador às 20h53, observando a folha existente em cima da mesinha de plástico à entrada do ginásio, que consiste numa espécie de simulacro do que acontece nas competições. Com base nessa folha, João Gomes expõe quem disputará quem nesse último jogo. “Às quartas-feiras fazemos uma simulação de competição para quando chegarmos às competições estarmos habituados”, explica Luana.

São agora 21h01 e as pessoas começam a desequipar-se. Há apenas um jogo pendente no ginásio. Quando finalmente termina, os dois jogadores apertam as mãos e despedem-se. O treino chegou ao fim. Luana apressa-se a abandonar o ginásio, porque no dia seguinte tem de acordar às 06h45 e recomeçar a rotina habitual. Algures nesse espaço de tempo ainda tem de rever a matéria de Economia, pois a frequência é às 16h00.

Carolina Pereira Silva

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