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“Esta pandemia atinge o coração da música”

São dez anos de carreira de Aline Frazão, cantautora e antiga aluna da NOVA FCSH. Na mala carrega não apenas o violão, mas também quatro álbuns e uma mão cheia de lugares por onde passou e viveu. A pandemia veio conferir uma celebração especial e uma reflexão nesta década de música.

Ao longe ouve-se a peixeira a gritar os pregões na rua onde vive. Aline pergunta: “Consegues ouvir? É a peixeira”. Luanda — cidade que a viu nascer, mas também partir para a NOVA FCSH aos 18 anos, e posteriormente a residir em cidades como o Rio de Janeiro, a ilha Jura (na Escócia) e Barcelona — é hoje a casa de Aline, a que regressou definitivamente há quatro anos. E por lá, ainda existem peixeiras que andam de casa em casa a vender peixe.

A celebrar dez anos de carreira, início marcado pelo lançamento de “Clave Bantu”, em 2011, seguido de “Movimento” (2013), “Insular” (2015) e “Dentro da Chuva” (2018), a cantautora aceitou mais um desafio na carreira: estreou-se na produção da banda sonora do filme “Ar Condicionado” (2020), uma produção da Geração 80 e realizado por Fradique. A longa metragem teve a primeira exibição no Internacional Film Festival of Rotterdam e a produção musical teve a participação do cantor angolano Paulo Flores.

Com apenas 32 anos, Aline já percorreu os palcos do mundo com a sua música. É assertiva na mensagem que passa e, para além da canção, dá voz ao ativismo. É membro da Ondjango, coletivo feminista de Luanda, e escreveu crónicas durante três anos (2014 a 2017) para a Rede de Angola, onde mostrou o seu ponto de vista político. A escrita, não só de canções, ganhou um novo fôlego na sua vida: foi convidada a escrever um conto para o livro dos 30 anos da APAV “À roda de uma vontade” (2020), e para a Granta, uma conto mais alargado com o título “Lucinda”.

A N+ foi falar com a antiga aluna sobre as suas raízes, o ativismo, os dez anos de carreira e a reflexão que a pandemia proporcionou no panorama musical.

A música sempre esteve presente na tua vida?

Eu não me lembro de mim, não tenho memória da minha primeira infância, de qualquer conceção de mim própria sem a música estar muito presente na minha vida. Começando pela minha família, os meus pais sempre ouviram muita música em casa, sempre gostaram muito. Hoje gostam muito de pôr música e desfrutam e emocionam-se muito. Acho que esse contexto me influenciou na música. Eles têm gostos muito variados e muito diferentes. Isso também fez com que eu crescesse num ambiente muito propício a essa linguagem e sempre gostei, mesmo quando via as novelas brasileiras que têm muito sucesso aqui em Angola ou os desenhos animados. A música sempre ficava comigo e sempre foi uma coisa muito presente, tal como a escrita, na verdade. Eu lembro-me que a minha madrinha me ofereceu aos nove anos de idade um diário, que eu ainda tenho.

Lembro-me de fazer esse exercício de escrever desde muito pequena. Claro que era mesmo muito criança, mas tinha já esse hábito de me relacionar com a escrita, desde o ponto de vista artístico, desde o ponto de vista poético, desde o ponto de vista de reflexão sobre a minha vida, era uma escrita mais autobiográfica. Então essas duas coisas sempre estiveram muito presentes tal como a dança.

Eu comecei a dançar com nove anos também, nessa altura quando eu tive as primeiras aulas extracurriculares de dança contemporânea e no ano seguinte, com dez anos, comecei a fazer dança clássica. Fiz ballet durante sete anos, mais ou menos, e depois fiz mais três anos de dança moderna até aos 18 anos, que foi quando deixei Luanda e fui para Lisboa estudar para a NOVA FCSH. A criatividade e a expressão artística sempre estiveram presentes na minha vida desde a primeira infância.

Sei que tens uma avó com raízes brasileiras.

A minha avó Alice nasceu e cresceu no Rio de Janeiro, ela é de família portuguesa, da Maia. E do lado do meu pai, a minha família também é de origem portuguesa. O meu avô paterno é do norte de Portugal, de Matosinhos, e do lado da minha mãe, o meu avô Carlos, é da ilha do Fogo, em Cabo Verde, que veio para Angola muito pequeno e a minha avó é angolana, do norte de Angola.

Foi com eles que encontraste a tua sonoridade?

É uma mistura de várias coisas, de vários fatores. Por um lado, como disse, os meus pais sempre ouviram música variada. Depois, por outro lado, eu estudava na Escola Portuguesa de Luanda e quando comecei a cantar em público juntei-me ao grupo coral da escola e àquelas organizações musicais, pequenos recitais na escola, e sempre graças ao professor Jorge Purificação, que era a pessoa que coordenava as atividades musicais na escola. Ele sempre teve também, curiosamente, um gosto musical muito amplo e muito parecido com essas mesmas referências que falei da minha casa: música de Cabo Verde, música da Guiné, música de Angola tradicional, música portuguesa, música brasileira, o jazz.

Eu tive oportunidade de experimentar cantar em várias línguas, experimentar cantar em vários lugares. Por outro lado, também devo dizer que em Luanda nós ouvimos música de muitos sítios. Luanda e Angola – é sempre uma generalização perigosa porque os contextos em Angola são muitos diferentes –, mas pelo menos nas cidades, na rádio e na televisão, as pessoas têm muito contacto com o Brasil, muito contacto com a música brasileira, com a música de Cabo Verde, desde a morna até às quizombas mais recentes, essa relação sempre foi muito próxima.

Então, de certa forma, isso tudo foi moldando o meu gosto. E a questão dos meus avós, das minhas origens familiares realmente davam um pano de fundo afetivo e um pano de fundo, uma história, uma narrativa, que fazia sentido para mim. De certa forma, eu venho desses lugares, qualquer pessoa também tem uma certa curiosidade em relação às suas origens familiares, e o facto de termos família em muitos sítios, a relação com a família no Brasil, as viagens que fizemos foi importante, e com Portugal obviamente, e lá está, em Lisboa existe uma relação muito grande com Cabo Verde.

No fundo, havia um contexto propício para ir moldando o meu gosto e os meus primeiros hits. As primeiras cantoras que eu mais admirei foram cantoras de Cabo Verde, a Sara Tavares, que é a cantora portuguesa com origem cabo-verdiana, e a Mayra Andrade, sempre foram duas referências muito grandes quando eu comecei.

Aline Frazão nasceu em Luanda em 1988 e desde pequena que está ligada às artes. Créditos: Instagram Aline Frazão.

Aos 18 anos decides ir estudar para a NOVA FCSH. Porquê o curso de Ciências de Comunicação e porquê sair de Luanda para Lisboa?

Como te disse, eu estudava numa escola portuguesa de Luanda e existe uma facilidade para transitar para o ensino português ao nível do ensino superior. Naquela altura as universidades angolanas não ofereciam a melhor reputação a nível de formação e melhores condições e essa possibilidade de estudar para fora, tanto para Portugal como para o Brasil, foi logo levantada dentro da família e eu queria ir para fora, tinha vontade de sair de Luanda. Há muita gente que se identifica com essa história de querer sair da sua terra para ir para uma cidade maior, ter as experiências de vida próprias dessa época.

Em relação ao curso em si foi um processo longo. Eu sempre fui uma aluna dedicada, sempre gostei muito da escola, sempre tive boas notas, tinha um bom desempenho escolar e eu sempre gostei muito de matemática. Na verdade, eu fiz o agrupamento B, que é das ciências exatas, e fui estudante desse agrupamento porque eu tinha como primeiro plano fazer Engenharia Civil. A escola teve realmente um impacto real nas minhas escolhas, na formação, na minha personalidade e nas minhas decisões.

O facto de eu ter tido filosofia no décimo ano mudou muito a minha perspetiva, realmente interessei-me muito pelas questões éticas – na altura o programa focava-se muito na ética – e aquilo realmente foi um amor à primeira vista. Fiquei muito, muito obcecada com a questão da filosofia. E ao mesmo tempo foi na altura que começamos a estudar algumas obras mais interessantes, a nível da literatura, na disciplina de português e então eu comecei a ficar dividida. A partir daí foi tentar ver como é que podia fazer acontecer.

É quase do oito ao oitenta, passar de ciências exatas para ciências sociais. Como é que uma disciplina pode ter tanta influência e impacto no processo de decisão?

Tem impacto, mas ao mesmo tempo, eu não considero realmente que sejam tão distantes. Porque no fundo tem muito que ver com uma questão ligada ao pensamento lógico e a uma abordagem na filosofia um pouco mais analítica, mais matemática no limite. Mas eu também sempre gostei muito de política. Durante o secundário sempre era um tema muito presente tanto em casa como na escola. Então a questão do jornalismo foi surgindo, sendo que também cresci numa Angola muito particular, muito específica, a grande imprensa era muito limitada e era também com um certo nervosismo que eu olhava para as possibilidades de ser jornalista aqui.

A minha ideia era regressar na altura e decidi ir estudar a área de jornalismo e consegui entrar na NOVA, que é um curso que na verdade não é um curso de jornalismo, é um curso de Ciências da Comunicação, o que ainda foi melhor. Foi uma sorte muito grande porque eu gostei muito do curso porque realmente ia ao um encontro de muitos interesses meus e era uma forma de aprofundar conhecimentos, porque é um curso muito variado, muito rico, com excelentes professores. E foi assim que eu entrei para a NOVA, foi um pouco por culpa da filosofia, do meu interesse pela filosofia. E hoje também vejo a importância de eu ter gostado tanto das aulas de português, da questão da literatura, das obras que se estudam no secundário.

Esse background que recebeste da tua licenciatura em Ciências da Comunicação foi uma mais-valia para escreveres na Rede Angola, durante três anos?

Sim, mais tarde, sim. Isso foram muitos anos depois na verdade, enquanto estava a fazer a licenciatura não estava ligada à música. E a questão das crónicas surgiu muito tempo mais tarde, lá para 2013, eu já tinha dois discos lançados, estava a preparar o terceiro. Eu penso que o curso foi muito útil em geral. Como eu disse, eu sinto que a minha vida académica foram fontes de muitas transformações, de muita aprendizagem, de muita curiosidade. Isso sem dúvida que tem um impacto na minha carreira profissional.

É interessante ler o que escreveste na tua última crónica: “Lembro-me de me sentir profundamente exposta, mais do que subo ao palco para cantar”. As letras das tuas músicas revelam a tua forte convicção na sociedade e revelam problemas sociais. Quando dizes que te sentias mais exposta pela palavra escrita, e não cantada, falavas no medo de que as pessoas não concordassem com os teus pontos de vista em relação à sociedade de Luanda?

Sim, era por aí. Eu tinha uma crónica livre de opinião todas as semanas durante quase três anos, estive nessa roda. E era muito lida, as crónicas em geral em Angola eram muito lidas, tinham gente muito interessante a escrever, o [José Eduardo] Agualusa, o Kalaf [Epalanga], a Ana Paula Tavares, o Reginaldo Silva, a Ana Luísa [Rogério], ou seja, muita gente interessante a escrever. E realmente aquilo tinha uma visibilidade grande e, no começo, realmente, dava-me uma certa vertigem registar. Uma coisa é numa entrevista tu falares, mas dava-me uma certa vertigem registar as minhas opiniões, as ideias que tinha do mundo pela primeira vez e de forma estruturada num texto.

Eu sentia-me muito responsável pelo que estava a dizer e isso muitas vezes causava-me muita ansiedade, como é que as pessoas iriam receber, até porque eu sempre tive uma certa sensação de estar um pouco fora da caixa, de estar fora de correntes de pensamento mais comuns. Eu sempre fui muito crítica em relação a muitas coisas e sempre tomei algumas escolhas, mesmo a nível pessoal, e isso, até hoje, é um pouco fora do guião. E isso tem as suas consequências.

Na música uma pessoa sente-se um pouco mais protegida e há todo o lado performativo do palco e das canções. A própria expressão artística, mesmo que estejas a passar uma ideia de mundo, uma opinião, uma ideologia, seja o que for, se essa mensagem passa através de canção e se tu és uma mulher jovem com um ar simpático, sabes, com certa doçura – as pessoas sempre dizem isso da minha música – isso atenua a mensagem, muitas pessoas até nem se dão conta dessa mensagem. Ou seja, há ali toda uma espécie de cápsula protetora que faz com que as coisas sejam mais suaves.

Quando é uma crónica política ou social está crua, e eu fora da música sou uma pessoa muito assertiva e eu sei, sendo uma pessoa assertiva, o preço social disso, quando és uma mulher jovem e com ar simpático (risos).

O single “Luz Foi” foi lançado para assinalar o 45º aniversário da independência de Angola, em 2020.

Pertences à Ondjango Feminista e consegues ajudar as mulheres e meninas que precisam de educação, espaço para pensar e para aprender, e não apenas trabalhar. Qual é o teu papel neste coletivo?

A Ondjango é um coletivo feminista que já tem uns quantos anos, é um coletivo de ativismo, de intervenção na sociedade, de transformação social, muito preocupado com as questões de justiça económica, com questões ligadas aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e meninas angolanas, e também com questões relacionadas com violência de género.

É um coletivo pioneiro em Angola, assim de uma forma mais assumida, e estamos no processo de constituição de associação para o coletivo e eu faço parte do grupo de coordenação, coletivo que se organiza dessa forma. Há um pequeno grupo de 10 a 15 pessoas que estão na coordenação das atividades e dos projetos na Ondjango. Eu considero a Ondjango um dos projetos mais promissores, um dos mais interessantes e um dos mais relevantes a nível de questões de justiça e de combate a todo o tipo de preconceito, relacionados com questões raciais, com questões de classe.

Estas são questões que estão na nossa agenda, estão na nossa pauta, estão no feminismo que nós defendemos e que procuramos desenvolver tendo em conta o contexto angolano. Quanto ao contexto de Luanda em particular, pois a grande maioria de nós vive em Luanda, o meu trabalho é mais uma peça de coordenação, trabalho muito na área de comunicação, aplicando os conhecimentos adquiridos previamente, e às vezes também trabalho com algumas coisas em programas e com moderação de mesas, com workshops e outras coisas, incluídas no nosso fórum anual.

Nós fazemos um fórum anual, o FAOFEM – que no ano passado foi online – e vêm dezenas e dezenas de mulheres de todo o país e além disso temos encontros mensais aqui em Luanda, onde também fazemos uma espécie de pequena palestra e um grupo de discussão sobre o tema. E além disso temos também várias publicações no nosso website ou até mesmo uma publicação formal, que é impressa, que se chama TUBA! Informe que tem sempre uma temática. Ou seja, é um coletivo que tenta sempre desenvolver a parte teórica e pensar mais e continuar com questões feministas relevantes no nosso contexto.

E por outro lado, partes mais práticas, como por exemplo, quando se reabriu a discussão sobre a lei do aborto em Angola, a Ondjango teve um papel importante na organização da marcha, também a nível da democracia, do contacto com as deputadas, mulheres deputadas no Parlamento, e que depois isso teve um efeito e gerou-se toda uma agenda à volta do assunto. A nível mediático falava-se muito sobre isso. E isso depois fez com que a lei fosse travada, porque a ideia era torná-la mais estrita ainda.

Ou seja, é um trabalho muito amplo, é um trabalho sempre em construção, sempre com muitos desafios, muitas dificuldades, muito pouco perfeito, com muito sentido de autocrítica, e com muito sentido de responsabilidade por parte de todas nós que estamos lá. É um grupo profundamente inspirador para mim. Foi uma verdadeira revolução política para mim participar com elas, pensar junto delas e aprender com elas. E eu acho que é um coletivo que vale a pena manter um olho, manter as spotlights, porque acho que tem muito para dar no contexto político.

Todos os teus trabalhos são pontos de rutura e de recomeço, com fortes inspirações e parcerias como Pedro Geraldes, Capicua, Jacques Morelenbaum, Luedji Luna, entre outros. Como é que estas parcerias te enriquecem profissionalmente?

São maneiras muito diferentes. Desde o começo que o meu trabalho é muito autoral no sentido em que estou envolvida em praticamente todos os passos do processo, ou seja, escrevo as letras, componho as músicas quase todas, sou uma pessoa que está muito ligada à produção dos álbuns, aos arranjos, à conceção artística em geral, as datas de lançamento, a estratégia de comunicação… Ou seja, sou uma pessoa que acaba por ocupar muito espaço dentro de mim, deste mundo.

Sempre gostei de estar dentro de tudo, então há sempre um momento em que estou a fazer um álbum novo em que me canso de mim mesma, porque eu sinto que preciso de cantar algo que não tenha sido eu a escrever, não ser as minhas palavras, sinto que acaba por ficar ali, tudo muito circular. E é nesse momento que eu recorro aos livros de poesia, procuro poemas, falo com escritores, com parceiros, para que me escrevam alguma coisa. Ou noutros casos, mais recentemente, eu escrevo um passo para eles comporem a música.

No caso do Pedro [Geraldes] foi a nível musical, o álbum Insular foi um álbum de rutura, como disseste, apesar de haver sempre muitas pontes, muitas ligações, mas realmente foi um álbum de exploração numa linguagem mais elétrica, mais ligado ao rock, ao noise, uma coisa mais atmosférica. Surgiu a ideia de convidar o Pedro para fazer parte da banda, da musicalidade, é uma peça central com a guitarra, com a linguagem dele muito particular, do álbum todo.

E noutros casos, mais recentemente no álbum Dentro da Chuva, eu queria mesmo ter convidados, não queria que fosse só um álbum a solo. Aquilo que te falava de estar farta de mim mesma (risos) potenciou-se porque era um álbum que estava nas minhas mãos e o Dentro da Chuva era um concerto a solo, eu estava sozinha na sala desde o princípio até ao final. E ainda por cima ao ir para o Brasil tinha muita vontade de convidar músicos brasileiros e fazer essa ponte, porque o próprio álbum Dentro da Chuva já é uma espécie de homenagem a toda a infância da música brasileira e das minhas linguagens musicais.

Então aí surgiu Jacques Morelenbaum como uma referência da bossa nova que é a principal influência brasileira identificável na minha forma de tocar. E foi realmente assim que eu aprendi a tocar o meu violão, foi aprender a tocar bossa nova, era a minha grande ambição, conseguir tocar aqueles acordes complexos, aquelas harmonias. Isso sempre me fascinou na bossa nova e foi a minha porta de entrada para o jazz e também para uma certa poesia porque eu considero muito rica a nível poético mesmo em poucas palavras. E depois a Luedji surge também como uma parceria dessas. Nós conhecemo-nos online, num jogo de ida e volta, eu nessa relação com o Brasil e ela com África e com Angola.

E eu considero a Luedji uma artista muito…. já na altura muito promissora, muito interessante, principalmente identificar-me com a linguagem dela, na música africana, e ela estima muito essas raízes, trabalha muitas essas raízes, também sendo compositora, uma mulher negra com uma voz fortíssima a nível político, a nível de pensamento, a forma como ela vê o Brasil. E eu queria juntar-me a essas pessoas. No caso do João Pires é uma história da amizade mais longa, muito intuitiva. O João morava em Belo Horizonte, no Brasil, e o João é uma inspiração para mim, é um grande amigo muito querido. Mas é uma inspiração na forma como ele compõe, a forma ávida de compor, é tão camarada, muito generoso.

Então o João estava lá, em Belo Horizonte, era só levá-lo para o Rio (risos). É mesmo uma parceria, eu nunca iria conseguir tocar aquilo como ele, e tive imenso gosto. Eu já tinha participado em vários trabalhos dele também antes, de outras formas, já tínhamos tocado ao vivo, temos uma relação musical já muito longa. Agora com este contexto pandémico, toca-me mais ainda falar sobre artistas que, além de eu admirar o trabalho, tenho um vínculo afetivo forte.

Aline produziu e escreveu músicas inspirada em autores portugueses e angolanos. Créditos: Instagram Aline Frazão.

Além dos nomes artísticos e musicais, todos os teus álbuns têm influências literárias. Num dos temas que tens do disco “Dentro da Chuva”, musicas em conjunto com Luedji Luna os versos de Ruy Duarte de Carvalho. Nesses versos, há um que diz “Porque é o silêncio que governa tudo”. Às vezes é preciso esse silêncio?

Totalmente. Na época desse disco, eu estava muito obcecada com a questão do silêncio, e já na altura sentia muito as marcas em mim. Na altura antes de editar o disco, durante a escrita, [estava] na fase de transição de Lisboa para Luanda e estava já a ressentir as consequências de viver uma vida ruidosa. Na verdade, é ruído no contexto global, eu vinha do contexto de ter escrito durante quase três anos semanalmente para o jornal, esse ruído de opinar, esse ruído da opinião, dos opinion makers, o ruído das redes sociais, o ruído dessa nova forma de vida era muito mediado, toda essa vida virtual.

O próprio ruído do ritmo de trabalho acelerado, das tours, das muitas viagens de avião, de muito cansaço físico, de muitas mudanças. Eram dez anos de muitas cidades, de várias casas, então era um momento de mudança a nível pessoal, um momento de necessidade de recolhimento, de ter tomado a decisão de vir para Luanda, ou seja, de não saber o que ia encontrar aqui e como é que eu ia me reencontrar aqui. E isso motivou muito a minha escrita nesse álbum, que já vinha do disco Insular, essa questão do isolamento, e era uma vontade de estar sozinha em palco, de me afastar do contexto de banda, de estar com outros músicos num certo recolhimento mais acentuado do que o Insular.

E durante a escrita do disco eu lembro-me muito bem de estar aqui em Luanda e de ter esse livro do Ruy Duarte Carvalho. Esse livro chama-se Como se o mundo não tivesse leste, estes livros são nativos aqui, são os únicos que não me desfaço, acho que os livros devem circular e tento não me apegar, mas os livros de poesia não consigo, porque é como uma espécie de bíblia, sempre voltas e abres aleatoriamente e nunca sabes. A poesia tem esse poder de se multiplicar em significados ao longo do tempo na tua vida.

E então abri o livro ao acaso e encontrei esse trecho final que resumiu um pouco toda essa minha busca, da mesma maneira que com o Insular, quando encontrei o conto d’ A Ilha Desconhecida de Saramago.

Acabaste por te inspirar em escritores portugueses.

Sim, eu já ia para Jura [pequena ilha na Escócia], o disco ia ser gravado numa ilha desconhecida para mim, uma pequena ilha tem toda essa questão do isolamento muito antes de ser moda (risos) e então foi-me apresentado esse conto e quando o li, aquilo era o grande resumo do que eu procurava e então escrevi a canção [O homem que queria um barco] de uma forma muito fluida, nesses momentos de inspiração.

E com o Ruy Duarte foi a mesma coisa, quando encontrei aquele texto fiquei impactada e escrevi a canção muito rápido, aquilo fazia todo sentido, aquilo é prosa, mas ele escrevia de uma forma tão ritmada, tão musicada, facilíssimo para passar para uma canção e tornou-se a canção mais emblemática do disco para muita gente, muito por esses versos. E acho que todos nós estávamos a vive-la [a canção] e eu sentia muito isso nos concertos. As pessoas ficavam muito impactadas com aquele minimalismo de elementos, era só uma voz e uma guitarra ou uma voz e um violão, ou à capela, mas aquela solidão, aquela essência, o mínimo necessário para fazer uma canção. Aquilo tocava as pessoas.

Recentemente tiveste a tua primeira experiência numa longa-metragem como produtora na banda sonora original do filme Ar Condicionado. Na música “Macedo” tão bem interpretada por Paulo Flores, o verso final “Sonho para não esquecer/Esqueço ao amanhecer”, revela o sonho num futuro melhor, mas que facilmente se esquece quando o comum dia começa?

Sim, penso que sim. Na verdade, é bem isso, não há muito a acrescentar. A única coisa que eu poderia acrescentar talvez é essa fronteira entre estar acordado e estar a dormir, tendo em conta que esse personagem é quase um sonâmbulo, é muito lento, muito silencioso, parece que paira sobre a cidade, uma cidade frenética, principalmente naquela zona da baixa [de Luanda]. Então é essa a fronteira entre o sonho e a realidade, entre estar acordado e estar a dormir que nem sempre é tão clara, até mesmo a nível social, ao nível da vida em geral. Há esse lado de fronteira difusa.

2Também esta ideia do sonho, não só como algo de dormir, mas como algo de imaginar, de projetar um país, esse exercício de imaginação que é necessário, também, na política, de se imaginar futuros. Ter a criatividade para lidar com crises e isso vê-se muito hoje. A nível político há uma dificuldade muito grande em lidar com o Covid, de como conviver com o Covid, como fazer para que a Economia não pare, e há um limite aí, há uma falta de criatividade que se pode identificar nos decisores, nos grandes círculos de decisão a nível político mundial. Há um limite muito grande e eu atribuo em parte essa falta. As pessoas pensam muito em Economia, pensam muito em números, a nível mais concreto como fazem as contas baterem certo, mas há pouco exercício criativo na política. E tem que ver com isso, quando eu falo em sonhar neste verso, é quase um exercício criativo de se pensar o país, de se poder inventar, um exercício de criar um país novo.

Como é que recebeste o convite, quando te foi lançado, e o que é que te inspirou para compores a tua primeira banda sonora original?

Foi ótimo, adorei! Adorei o processo, adoro o filme, eu acompanhei o processo de escrita do filme, ainda do guião, que foi escrito pelo Fradique e pelo Ery Claver, então já estava familiarizada com os personagens. Eu tomei a liberdade de experimentar, essa oportunidade foi-me dada e foi a minha oportunidade de me desvincular da música enquanto canção, enquanto letra e música. Tinha muito claro que eu não ia querer cantar, que a minha voz não estivesse lá, era a minha oportunidade de lidar com música de um outro lugar, no lugar em ela está diretamente ligada com as imagens, com a história, com as personagens.

Nem eu sabia que tinha tanta vontade, mas mais tarde isso foi ganhando sentido. Muito da banda sonora é uma desconstrução da música, da música contemporânea quase como se fosse música clássica, lidar com a música como som, como massa, como cor, como textura. E isso foi um exercício muito bom de se fazer, muito divertido, muito inspirador, uma coisa nova, uma coisa fresca.

No início, dava-me alguma vertigem em fazer algo novo, sempre se tem essa vertigem, mas é uma boa vertigem. Pode-te paralisar, tive momentos de parar, mas depois que eu comecei a trabalhar e que o Fradique foi gostando das coisas que lhe ia mostrando, senti a confiança de que no fundo isto é música e eu já faço isto há muito tempo.

E foi muito interessante, eu gosto muito de cinema. Então, como dialogar com a imagem, trabalhar à distância com músicos, que alguns gravaram em Lisboa, foi ótimo, adorei! O filme também é generoso no espaço que dá a música. O Fradique é um realizador com uma relação muito íntima com a música e dá-lhe muito importância e então isso ainda foi melhor. Para mim foi uma experiência que eu adorei e tenho muita vontade de fazer mais porque foi uma experiência muito inicial, muito primária, muito simples. Continuo nessa senda minimalista, com poucos elementos.

Aline escreveu o conto “Lucinda” para o número 6 da revista Granta com o tema In Memorium. Créditos: Instagram Aline Frazão.

Aline, este ano é o ano, o ano da década. Já há data prevista para o lançamento do teu quinto álbum?

O que eu te posso adiantar é que se há algo que a pandemia nos ensinou é que não dá fazer grandes planos. Já não sei se o álbum vai sair este ano. As coisas estão em constante mudança e como sabes, dentro da área das artes, é todo um terreno muito difícil de caminhar.

Há muitas incertezas, há um contexto muito turvo a nível do que vão ser os espetáculos e da música em particular, que é o que me toca de mais perto. E realmente esta pandemia atinge o coração da música. A música é uma arte social, é uma arte de contacto, de proximidade, que não se pode fazer neste momento. Então é preciso ajustar os planos um pouco a isso, então neste caso estou a refazer, a reformular. Neste momento ainda não tenho datas, mas estou a reformular os planos para a gravação do disco, para a escrita do disco, até porque a pandemia não afeta só os planos concretos de calendário, afeta o nosso estado de espírito, e eu como autora tenho que lidar com todo esse contexto.

E assumi no ano passado que era preciso pôr um travão e ajustar os planos mais uma vez, e é nisso que estou neste momento. Ainda não sei muito bem como será a nível de calendário, mas o álbum seguramente será gravado este ano, mas não sei é se sairá este ano.

Como é que refletes estes dez anos de carreira?

Muito feliz, muito contente, com muitas memórias maravilhosas na coleção, profundamente privilegiada, sinto que se acabasse aqui era profundamente redondo, esses dez anos, esses quatro discos, os vários palcos, as várias tours, os vários músicos, as canções. Ou seja, foram dez anos muito ricos, muito generosos, muito felizes!

Então o que eu mais tenho refletido este ano é no meu primeiro disco. Olhando para trás, para o começo. Esses dez anos foram maravilhosos, como te disse, mas eu tenho pensado muito no começo, nessa coragem de começar que tive na altura, como foi, também foi muito independente, muito na marra, com muito apoio, com a entrega de muitos músicos e de muita gente à minha volta e foi um processo muito mágico.

Principalmente o primeiro disco, foi o disco que quanto mais eu penso nele, mais o admiro. Não porque o escute, custa-me muito ouvi-lo, não tanto pelas músicas em si, mas pela minha forma de cantar, era muito diferente do que canto hoje. Mas as canções eu acho lindas, uma pessoa olha para trás e pensa: “Como é que fui capaz? De onde é que eu tirei, com vinte e poucos anos, o engenho e a arte para escrever isto, meu Deus?” (risos). E é um pouco surpreendentemente, eu própria me surpreendo.

Porque eu me afasto delas [das canções dos álbuns], uma vez publicadas eu afasto-me, é uma relação diferente, é uma relação nova, então eu gostava muito de voltar a esse disco, aproveitar que ainda é um ano entre discos, um ano meio “intervalesco”, e quero voltar a essas canções e celebrar esses dez anos, ao começo de tudo. É um disco que diz muitas coisas sobre o que aconteceu depois, todos os meus álbuns acabam por ser uma consequência, uma rima, mesmo que seja uma rima torta, uma rima de rutura, há sempre algo que já estava lá e isso é muito bonito.

Ana Sofia Paiva

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