É acordeonista, compositora, professora, cantora e investigadora na NOVA FCSH. No reportório, Celina da Piedade conta com duas participações no Festival da Canção: a primeira com os Homens da Luta e a segunda na final com Salvador Sobral. Entretanto, toca com Rodrigo Leão e prepara-se para lançar o seu quarto disco a solo.
No lado direito prendeu um malmequer de centro amarelo e, a condizer, dois limões, um em cada brinco, que contrastam com os seus cabelos negros ondulados. Esta é a imagem de marca de Celina da Piedade: a natureza, seja ela expressa em flores ou frutos, com cores vivas, pujantes. E isso reflete-se na sua obra.
Não procurou a música, foi ela que a encontrou, conta Celina. O seu acordeão já percorreu muitos quilómetros, festivais, encontros e deu a conhecer o folk português em vários países. Aos 14 anos compôs a sua primeira música, essa que anos mais tarde iria fazer parte do álbum do grupo que fundou, os Uxu Kalhus, a primeira banda a trabalhar o reportório das danças portuguesas, criado em 2000.
“Eu só costumava tocar para mim ou nos concertos, mas depois gravei [a música] no primeiro disco dos Uxu Kalhus”, grupo onde ganhou mais “estaleca” a compor. Foi vocalista, acordeonista e compositora até 2010 e editou “A Revolta dos Badalos”, em 2004 (Hepta Trad) e “Transumâncias Groove”, em 2009. Mas pelo caminho, participou e compôs para artistas como Samuel Úria, Mayra Andradre, Uxia, Amor Electro, entre outros. E a composição estendeu-se ainda a bandas sonoras para cinema, dança e teatro.
“Às vezes [a composição] tem que ver com o contexto. Se acontece ser uma encomenda para compor um genérico ou uma música para alguém que já está a pensar gravar um disco, aí eu tenho que pensar sempre mais no objetivo”, explica. Mas quando está a compor para si, a música já é outra. “Eu gosto muito de tocar [e compor] para as pessoas dançarem, gosto mesmo muito, sinto-me muito útil. O papel como música e como compositora é muito mais gratificante”, afirma com entusiamo, “porque sinto de facto um grande impacto do outro lado e sinto que as pessoas tiram um verdadeiro prazer ao dançar”.
O folclore português tem um conjunto de danças ricas em movimento, em contexto e alegria. É essa essência que Celina tenta transmitir. O folclore não se resume apenas a conjuntos como os Ranchos Folclóricos ou Bandas Filarmónicas. É muito mais do que isso, é património que expressa a cultura portuguesa e o acordeão faz parte desse imaginário. Celina apaixonou-se pelo instrumento ainda sem saber falar.
“As voltas do vira” até ao Festival Andanças
A paixão foi ao primeiro acorde. Celina nasceu em Lisboa, na antiga clínica São Gabriel, em São Jorge de Arroios, e viveu uns meses na cidade. A morada oficial passou a ser Setúbal e foi lá que ouviu o acordeão de Lena Mendes. A acordeonista era prima da vizinha e Celina quando a ouviu tocar, ainda com um ano de idade, estremeceu: “Os meus pais dizem que eu sempre me mostrei muito entusiasmada quando ela tocava, ficava assim muito agitada”.
Quando começou a falar, as primeiras palavras não foram acordeão, mas mal conseguiu, pediu para ter um: “Ficava doida, parava nas montras dos instrumentos e não queria vir embora”, conta entre risos. O pai de Celina, entusiasta musical, não se contentou em oferecer instrumentos de brincar à filha. “A partir dos três anos o meu pai começou a comprar-me instrumentos, só que comprava os instrumentos a sério!”.
Começou por lhe dar um órgão e só depois o acordeão, para satisfação de Celina. E a pessoa que a inquietava na música passou a ser a sua professora. Lena Mendes, à época com 14 anos, teve a pequena Celina de cinco anos como primeira aluna. “Mas eu lembro de ter três anos e de estar ansiosa para começar a ter aulas. Eu brincava com o acordeão no colo e deixavam de fazer barulho à vontade!”, ri-se a compositora. Teve aulas de música em casa até aos 10 anos, altura em que abriu o Conservatório de Música em Setúbal. E Celina nem pensou duas vezes quando Lena Mendes lhe propôs ingressar.
O Conservatório era para Celina como o oceano para os peixes. Cantou no coro, tocava e ensaiava, fazia alguns espetáculos nas horas vagas e ainda chegou a dar aulas, uma experiência “traumática” aos 15 anos. A música para a artista era tão enraizada que sofria (e ainda sofre) por ela: “Lembro-me de ter oito ou nove aninhos e sentir paixão tão grande pela música que começava a chorar. Era uma coisa que estava mesmo no fundo da alma” e, por isso, tinha receio de ingressar no curso de música no Ensino Superior, dado que os professores eram académicos e não músicos de estrada. O encanto e o amor à música podiam desvanecer-se.
E foi em Évora que se encontrou sem querer. Ingressou no curso de História e Património Cultural na Universidade de Évora, porque à época a vertente de acordeonista ainda não tinha aberto, e assumiu um compromisso com ela própria: iria ser apenas uma estudante de património. Só que não, a música voltaria a procurá-la mais uma vez.
No segundo ano de licenciatura, Celina recorda que havia uma festa na sua casa e estava a ensaiar no quarto. Foi aí que conheceu Alípio Carvalho Neto, professor de grego na Universidade de Évora, mas também saxofonista exímio. “Ele começou a ir lá a casa e levava o saxofone e começou a desafiar-me. Conseguiu arranjar uns pequenos concertos, mas eu no início não queria porque não sabia improvisar”, conta. Mas acabou por ser convencida pelo professor e juntos começaram a tocar de improviso.
Estas andanças na música em Évora mudaram a vida da artista. Pouco tempo depois, recebeu um convite para integrar um grupo de músicos para tocar canções no 25 de abril. Foi aí que conheceu Gregg Moore, uma referência na música. “Foi muito giro porque na altura precisei mudar de casa e o Gregg tinha um quarto na dele e eu fui morar para a sua casa. Foi como se estivesse em Berkeley”, diz entre gargalhadas.
“Ele tinha a maior discoteca de música do mundo que eu já vi em toda a minha vida. O Gregg fazia os ensaios todos lá em casa, todos os trabalhos que fazia de criação e de composição fazia-os lá”, recorda com entusiasmo.
E tudo acabou por se convergir e encaminhar para a Associação PédeXumbo. Esta coletividade nasceu em 1998 no seguimento do festival Andanças, surgido em 1996. O impulsionador foi Paulo Pereira, biólogo de formação, mas músico e artista. Celina conta que a ideia de Paulo começou quando fez um Erasmus em Barcelona, por estar em contacto com outros músicos e danças europeias.
Chegou a Portugal e quis implementar a ideia e o primeiro Andanças foi suportado financeiramente por Paulo Pereira, com o dinheiro que ganhou a tocar em Barcelona. A primeira experiência correu bem e o festival começou a ganhar cada vez mais relevo. “Era um movimento em que a ideia era pegar nas coisas tradicionais e dar-lhes uma nova roupagem e um novo sentido atual”. E a PédeXumbo surgiu nesta necessidade de complementar o festival.
O momento em que Celina descobriu esta associação foi “um dos momentos mais importantes da minha vida” porque mudou o curso da sua vida. Afinal, a música não iria estar em segundo plano. Os Uxu Kalhus formaram-se, com Paulo Pereira a integrar o grupo, e o canto alentejano aparece na vida da artista. “Eu fiquei como o Marco Paulo, com dois amores: por um lado o canto alentejano e o outro a música folk, de dança”.
O mundo é uma nota: o trabalho com Rodrigo Leão e os Festivais da Canção
“Estou? Celina da Piedade? Daqui é o Rodrigo Leão”. Aos 21 anos, Celina recebeu a chamada que lhe iria ocupar a agenda nos próximos 17 anos. Estava em 2000. E tudo aconteceu por causa da Associação PédeXumbo que foi fundada no fervilhar de outras associações com a mesma finalidade, como a Associação Gaita de Foles, em Lisboa, a Associação d’Orfeu, em Águeda, e os Tocá Rufar, no Seixal.
Havia permutas entre as coletividades e, para além disso, os músicos costumavam encontrar-se no bar “Fala Só”, na Praça da Alegria, em Lisboa, às quartas-feiras. Celina conheceu Paulo Marinho, gaiteiro na banda Sétima Legião e membro dos Gaiteiros de Lisboa e foi ele que a recomendou a Rodrigo Leão, que à época estava à procura de um acordeonista. “O Rodrigo perguntou-me se estava disponível e o primeiro concerto era no Grande Auditório do CCB. Eu só poderia dizer que sim”.
A experiência correu muito bem, relembra a artista: “O Rodrigo tratou-me como se fosse da família e é uma parceria que se mantém até hoje”. Apesar de Celina já não percorrer os palcos com o músico, mantem colaborações pontuais com Rodrigo Leão. Pelo caminho das digressões e tours com o artista, até 2017, Celina participou em dois Festivais da Canção.
Membro fundador dos Homens da Luta, a compositora não estava à espera de ganhar a edição de 2011. Quando foram anunciados os vencedores, os Homens da Luta receberam o prémio e foram diretos para Ovar: “Os jornalistas nem conseguiram ter tempo de nos apanhar, pisgamo-nos logo para ir dar um concerto a Ovar. Chegamos lá às três e pouco da manhã e o público estava à nossa espera!”, relembra com muitos risos à mistura. Sobre o clima que se sentia nessa edição, a artista aponta que a maioria dos músicos foram simpáticos com eles. Já parte do público tecia comentários negativos.
Quanto a isso, Celina defende: “Na verdade eles não entendiam porque todos nós éramos grandes fãs do Festival da Canção. Todos nós adorávamos Ary dos Santos, Fernando Tordo e tudo o que o festival significou para a música portuguesa nos anos 70, todo o espaço de liberdade poético que o festival tinha e que era incrível” e “nós achávamos que o festival que está lá estava era uma sombra do que tinha sido, então nós queríamos agitar as águas”, confessa.
Em 2017, o Festival da Canção bate-lhe novamente à porta, desta vez por convite. A RTP decidiu convidar compositores e a escolha era do próprio: ou era o compositor a entoá-la ou então outro artista. Celina ainda duvidou, mas decidiu ser ela a voz da “Primavera”.
Se o fim é um começo
Voltamos sempre a lutar
Já lá vem outro abril
É tempo de semear
Da espera faz-se a luz
Da primavera a nascer
Um fruto é como um filho
Do querer
Dois, três, e
A tudo o que aprendemos
Beijado ao calor do verão
Esquecemos neste inverno
Faltou-nos uma canção
Cantar pra não esquecer
Que unidos não estamos sós
Que temos liberdade
Na voz
É primavera quando chegas
Sou andorinha p’ra te ver
E as flores que trazes são vermelhas
Há sempre esperança a renascer
É primavera quando chegas…
“Esta letra, não sei se toda a gente entendeu, é uma homenagem ao 25 de abril. Houve muita gente que disse que só estava a cantar sobre a primavera e as flores e os passarinhos (risos)”. Celina tentou inspirar-se na poética de Ary dos Santos, e Júlio Isidro, conta a artista, foi ter com ela e afirmou-lhe que entendeu a letra e que sabia do que estava a falar. “Quis fazer uma coisa que por um lado refletisse esta minha ligação à música folk, mas que por outro lado também fizesse essa homenagem ao 25 de Abril, esta ligação do festival ao 25 de abril”. Esta dedicação valeu-lhe a final contra Salvador Sobral.
“Tive uma sorte tremenda por ter participado neste festival, porque ver o Salvador chegar – ele estava muito doente na altura –, e dava-nos a todos dez a zero”. Celina conta que “toda a gente ficava com lágrimas nos olhos” porque todos faziam os ensaios, enquanto Salvador Sobral estava no hospital, e “ele aparecia meia hora antes de atuar e entrava no palco, às vezes com os microfones sem funcionarem bem e dávamo-nos a todos vinte a zero”, recorda com admiração.
Mas numa competição entre Celina da Piedade e Tonicha, vencedora do Festival da Canção em 1971, quem ganhava? “Ah nem era preciso competir, eu entregava logo o prémio à Tonicha”, ri-se a compositora “porque a admiro e porque é minha prima”. A mãe de Celina e Tonicha são primas e ambas nasceram em Baleizão, uma vila alentejana perto de Beja.
De raízes alentejanas, Celina ficou entusiasmada quando soube que o canto alentejano estava a candidatar-se a Património imaterial da Humanindade e os Tais Quais surgiram no seguimento dessa candidatura: um grupo constituído por Vitorino, Tim (Xutos & Pontapés), Jorge Palma, João Gil, Serafim, entre outros. “Fomos desafiados pela Câmara de Serpa que foram os responsáveis pela candidatura. Eles encomendaram-nos um concerto. Aliás encomendaram ao Tim, inspirado na música alentejana, e ele juntou o grupo principal” que se mantém até hoje.
De todas as vivências e experiências, Celina acabou por encontrar na NOVA FCSH a convergência de todos os seus saberes, da prática à teoria.
A carreira a solo versus de investigadora
Na carteira já tinha várias músicas e composições que gostava de dar a ouvir. E foi esse desejo, impulsionado pelo desejo de uma carreira a solo, que Celina decidiu lançar um CD duplo, em 2012, com o nome “Em Casa”. Seguindo o padrão de um lançamento por cada dois anos, em 2014, presenteia os fãs com o álbum “O Cante das Ervas” e, em 2016, o “Sol” veio iluminar o panorama musical português.
Os primeiros dois álbuns foram patrocinados pelo Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (IELT) da NOVA FCSH e a artista sente-se agradecida por esse apoio. Contudo, quis o destino e as voltas da vida, aliados aos vários projetos que integra, que a cadeia de álbuns ficasse por 2016. Cinco depois, em 2021, Celina revela satisfeita o lançamento do próximo trabalho em março, intitulado “Celina da Piedade, ao vivo na Casinha”, gravado na garagem dos Xutos & Pontapés, que, em pleno confinamento em 2020, decidiram organizar a área para ser um espaço onde os artistas pudessem gravar e emitir em direto nas redes sociais.
Celina reuniu um conjunto de artistas e transmitiu um concerto ao vivo: “Fizemos várias gravações e a que ficou [para o álbum] foi a do direto”. Este novo disco tem 12 temas, em que oito são originais e quatro são revisitações de outras músicas.
No entretanto, tem-se dedicado à investigação no Instituo de Etnomusicologia, Centro de Estudos de Música e Dança (INET-md), da NOVA FCSH, onde integra o projeto “EcoMusic – Práticas sustentáveis: um estudo sobre o pós-folclorismo em Portugal no século XXI”. “Lisboa não é só fado, nem no resto do país são só aquelas grandes práticas pelas quais são conhecidas. No Alentejo não é só canto alentejano e por aí fora”, indica.
O projecto visa mapear e inventariar as práticas musicais comunitárias em Portugal através da significação e dinamismo social e cultural que adquiriram no início deste novo século: “De facto, o nosso país é riquíssimo em práticas, sobretudo de âmbito comunitário, e tem mesmo que ver com a música que liga as pessoas”, explica.
O EcoMusic tem como objetivo o levantamento das práticas do folclore português, mas a pandemia não permitiu que acontecesse em 2020 devido às restrições. Porém, o projeto já tem website e espera-se conseguir complementá-lo ainda este ano. Celina fez a pós-graduação em Estudos de Música Popular, que já não existe na NOVA FCSH, em 2008. A turma foi “impagável” porque juntou músicos dos Gaiteiros de Lisboa, da Associação Gaita de Foles, dos Tocá Rufar, Eduardo Paes Mamede e ainda a companheira de vida e de trabalho Michel Giacometti, Leonor Lains.
Mais tarde, fez o Mestrado em Ciências Musicais-Etnomusicologia na NOVA FCSH e integrou a unidade de investigação na qual faz parte. Lá conheceu outros artistas e músicos, como Teresa Gentil, que é profissional na Fábrica das Artes do Centro Cultural de Belém (CCB).
Ainda em 2020, surgiu outro projeto no qual se orgulha, a convite de Madalena Wallenstein, programadora da Fábrica das Artes do CCB, sugerido por Teresa Gentil, também investigadora do INET-md. Em conjunto com Catarina Moura e Sara Vidal criaram um espetáculo cénico para crianças sobre a infância de Amália, “mas partindo não do fado, mas da música tradicional porque Amália até se tornar fadista cantou muita música da Beira Baixa”, refere. As três recriaram poemas de tom mais infantil da fadista, utilizando a música tradicional portuguesa como pano de fundo. Contudo, com a pandemia, os espetáculos estão suspensos.
Celina da Piedade percebe hoje que não procurou pela música, foi a própria que a encontrou nas entrelinhas da partitura da vida. Entre o sol bemol e o dó sustenido, a artista vê congregada na investigação todo o conjunto de saberes que foi colecionando e escrevendo ao longo dos anos, desde a idade em que o pai a colocava a cantar nas festas de Natal dos correios e a mãe aprendeu música para lhe ensinar, quando Celina ainda não sabia ler nem escrever. No meio da música, Celina floresceu e quer continuar a levar o folclore português aos quatro cantos do mundo.
Fotografia de destaque: Celina da Piedade. Créditos: Rita Carmo.