O abrandamento da economia e a falta de turistas puseram em causa a sobrevivência do mercado imobiliário. Em Lisboa, o vírus trouxe consigo novas maneiras de subsistir nesta época estranha para o setor e para a cidade.
O ding dong da campainha da loja avisa que um cliente acaba de entrar. A máscara, que estava no queixo, passa a cobrir a face de Cátia Chiquita Cabral até ao nariz. Quando não está ninguém na loja, a operadora de caixa desliza aquele retângulo de tecido para respirar melhor. Mas, com outra pessoa no mesmo espaço, todas as medidas de precaução são tomadas: desinfeta as mãos e atende o cliente com a máscara e o devido distanciamento.
Cátia tem 26 anos e trabalha num supermercado em Sapadores, em Lisboa. Não deixou de trabalhar desde o surto da pandemia e, desde o início de junho, decidiu deixar o quarto na Graça para se mudar para o bairro das Colónias, na zona de Anjos. “Até ao momento vivia com dois colegas, mas um dos problemas de Lisboa é que há pouco espaço”, conta. “Apesar de gostar de viver com os meu colegas, com o avançar da idade senti que precisava de ter mais espaço [no quarto]”.
O novo quarto de Cátia é maior que o anterior: tem varanda, uma cama de casal e escrivaninha. O quarto da Graça era interior, não tinha janelas e era um espaço onde cabia uma cama de corpo e meio. Cátia paga 300 euros pelo arrendamento do atual quarto, um valor mais elevado do que o anterior, mas que lhe dá mais conforto na azáfama dos seus dias.
Contudo, a operadora de caixa considera que a generalidade dos preços praticados na capital são exagerados: “Quando falo que o preço é injusto, falo em geral dos preços em Lisboa, tendo em conta a média do ordenado. Nada justifica pagares 300 euros por um quarto. Se virmos bem, quase metade do ordenado é para dormires e o resto é para comeres. Por isso é que eu tenho dois trabalhos”, desabafa.
Quando não está a trabalhar no supermercado, aproveita as folgas para fazer limpezas numa casa. É dinheiro extra que entra no orçamento e que a ajuda nas despesas onde, entre outras, entra a carta de condução.
João Seixas e Gonçalo Antunes, investigadores do Centro Interdisciplinar de Ciências Socias (CICS.NOVA) da NOVA FCSH, publicaram em 2019 na revista Cidades, Comunidades e Territórios, um artigo sobre as tendências da segregação habitacional na Área Metropolitana de Lisboa (AML). Os investigadores calcularam mais de 500 taxas de esforço médias territoriais das famílias para conseguirem arrendar casa na AML e verificaram que é na cidade de Lisboa onde as rendas são quase insuportáveis, em contrapartida com as restantes zonas da AML.
As taxas de esforço médias territoriais foram calculadas entre 2017 e 2018 e no segundo trimestre de 2017 para o homólogo de 2018, a taxa de esforço das famílias para arrendar casa no concelho de Lisboa aumentou de 59% para 67%, logo a seguir a Cascais (em que a taxa de esforço é 68% no último semestre de 2018).
Já nas 24 freguesias de Lisboa, apenas quatro se encontravam abaixo do limiar dos 50%, apesar de serem superiores a 45% – Ajuda (49%), Marvila (48%), Beato (46%) e Santa Clara (46%) – o que se traduz num enorme esforço por parte das famílias e limitam o acesso ao mercado de arrendamento.
Cada vez é mais difícil para os indivíduos em início de vida ou mesmo para estudantes conseguirem arrendar uma casa no concelho que seja equilibrado com o rendimento. Nas freguesias de Lisboa, famílias com ordenados baixos (50% do rendimento líquido médio mensal, ou seja, pouco mais de 485 euros) e de 75% do rendimento líquido médio mensal (ou seja, 735 euros) é praticamente impossível arrendar uma casa.
Com o aparecimento do COVID-19, a pandemia que colocou tudo em suspenso, assistimos a pequenas modificações no preço dos arrendamentos em Lisboa. Por exemplo, um T4 no Bairro Azul que antes estava a 2.750 euros, passou para 2.600 euros, ou seja, teve uma redução de 5% no preço. Ainda no mesmo bairro, perto do Parque Eduardo VII, um T3 custava mensalmente 2.200 euros e agora está a 1.900 euros, o que significa uma diminuição de 14%.
Apesar da ilusão dos “saldos” na capital, a verdade é que Lisboa continua a ser a cidade mais cara para arrendar e a única a registar um aumento percentual de abril para maio deste ano. As rendas subiram 0,5%, aponta o barómetro mensal de maio da plataforma Imovirtual, e seguem-se as cidades de Porto, a Região Autónoma da Madeira e Faro, apesar de registarem uma diminuição de preço. A mesma plataforma refere que, de forma geral, os valores das rendas diminuíram 17,7% de 2019 para 2020.
“Acho que a cidade de Lisboa entrou num período de valorização que faz com que a taxa de esforço, para a média do rendimento das famílias da AML, seja sempre relativamente elevada”, reforça Gonçalo Antunes. Aponta ainda que a mesma propensão se aplica à habitação na linha do Estoril porque “esta tendência que se criou, este padrão, gerou uma maior desigualdade ao longo dos últimos cinco seis anos, no fundo”.
João Seixas concorda com este panorama e crê que pode haver “uma estabilização nos preços do metro quadrado, alguma baixa em algumas zonas da cidade, mas ao mesmo tempo há uma maior precariedade de rendimentos. E, portanto, em termos médios de taxas de esforço médias territoriais, não se vão alterar nos padrões que já estavam”, esclarece.
Contudo, o vírus trouxe consigo um problema ainda maior: a subsistência dos Alojamentos Locais (AL) e dos Airbnb. Com o turismo em suspenso, cada agente económico tenta sobreviver como pode.
O estranho caso dos alojamentos locais
“Eu acho que há muito charlatão por aí”, enfatiza Cátia ao contar um episódio que aconteceu enquanto estava a trabalhar. Um cliente foi à loja e falou-lhe sobre um T3 que estava a alugar na zona da Feira da Ladra, junto ao Panteão Nacional, por 600 euros. Era alojamento local, mas que estava agora a arrendar com a exigência de “duas ou três rendas de adianto, com caução e com um fiador”, conta Cátia.
“Para mim, é um falso arrendamento o que estão a fazer neste momento”, diz, “vão fazer com que as pessoas arrendem as casas, mas daqui a um ano mandam-nas embora”, porque, na opinião da operadora de caixa, os turistas vão regressar à capital quando tudo estiver mais estabilizado e o “negócio” vai voltar ao normal.
O AL estava em crescimento e relativamente estabilizado, apontam os investigadores da NOVA FCSH, mas os sintomas de saturação na capital já se faziam sentir e “alguns até já procuravam voltar ao mercado de arrendamento normal”, afirma Gonçalo Antunes. Ou seja, “os desequilíbrios que já existiam antes estão agora mais acentuados” com o vírus e o abrandamento da economia, refere João Seixas.
São, de facto, os negócios familiares que tentam subsistir das mais várias formas, tal como o cliente que entrou na loja onde Cátia trabalha. “São esses, os mais pequenos, que estão a fazer contas de uma forma muito preocupada e a colocar os seus apartamentos em arrendamento e de uma forma cautelosa”, afirma João Seixas. Outros, concorreram ao programa Renda Segura, da Câmara Municipal de Lisboa (CML), onde inscrevem os seus imóveis para serem arrendados pela autarquia para depois a mesma subarrendá-los a preços mais acessíveis, através do Programa de Renda Acessível (PRA).
Os arrendamentos pela autarquia tem uma duração de cinco anos e, segundo avança o ECO, o custo para a CML ronda os quatro milhões e meio de euros anuais. O mesmo meio de comunicação noticia ainda que a Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal (APEMIP) aliou-se à CML para impulsionar este programa com benefícios para cada contrato celebrado. Até 9 de junho, o programa Renda Segura recebeu cerca de 10 mil candidaturas, avançou o edil.
João Seixas concorda com este programa, considera uma “iniciativa muito interessante”, mas aponta que foi criticado “por uns por acharem que a é a CML a querer dominar, outros a achar que a rentabilidade é pouca, outros a achar que é muita, e portanto estamos num território eivado de ressentimentos, de ideologia e não é assim tão simples o que vai continuar a breve prazo”. As desigualdades no setor imobiliário e de arrendamento são agora mais visíveis do que nunca. O vírus tornou-as mais flagrantes.
No webinar “60 minutos APEMIP” de 28 de abril, uma videoconferência semanal organizada pela APEMIP, Ana Pinho, secretária de Estado da Habitação, disse que “pelos piores motivos se tornou claro o erro de colocar todo o património imobiliário numa só forma de exploração”, noticiou a Visão.
João Seixas não considera um erro, mas “os tipos de objetivos dos investimentos que estavam a acontecer é que eram desequilibrados, porque eu sempre achei que se aproveitasse o investimento internacional e nacional do imobiliário para vários tipos de funções da cidade”. Além disso, acrescenta que “uma cidade deve ser por natureza múltipla, com mistura, com diversidade, portante ter alojamento local, ter habitação social, ter habitação a preços de mercado, ou seja, ter essas funções todas”.
A aposta em alojamentos locais ou em negócios turísticos era um investimento praticamente seguro, refere Gonçalo Antunes. O problema começou quando este tipo de negócio começou a ser explorado de forma exagerada “porque o turismo é bom e contribuiu muito até para que Portugal crescesse do ponto de vista económico, após a crise económica [de 2011]. O problema é quando se torna excessivo”, esclarece.
Lisboa, a cidade com um dos turismos mais baratos da Europa
As ruas estão mais silenciosas, o que não é normal para uma metrópole com perto de três milhões de habitantes. A cidade de Lisboa está mais despida, sem os habituais arraiais dos santos populares e a concentração massiva de diferentes línguas. “Houve uma altura em que saia de casa e não via ninguém”, afirma Cátia quando ia para a loja quando foi declarado o Estado de Emergência.
O turismo abrandou com o vírus e, com ele, todo um setor direcionado para isso tenta sobreviver. “É possível e faz sentido que Portugal consiga vender bem a sua imagem no estrangeiro de um país seguro, de um Serviço Nacional de Saúde que funcionou bem e, portanto, é possível que o turismo volte de novo”, aponta João Seixas. Mas não tem tanta certeza se regressa com a dimensão de anos anteriores porque o país depende das viagens aéreas por estar afastado dos principais mercados da Europa.
Apesar disso, há algo a favor do país: aos olhos dos estrangeiros, o turismo em Portugal, sobretudo em Lisboa e no Porto, é visto como sendo barato ou low cost. “Se formos a ver os estudos sobre o turismo realizados em Lisboa, uma das coisas que os turistas mais apreciam, digamos assim, com que saem mais satisfeitos, é porque acham tudo barato”, explica Gonçalo Antunes, “os museus são baratos, as refeições são baratas, o turismo em Lisboa é visto como um turismo que não exige grandes gastos”.
Desta maneira, se até à pandemia o turismo em Lisboa era considerado acessível, no futuro é provável que assim continue, o que pode aumentar a competitividade do país face aos restantes, opina o geógrafo. Apesar disso, o que a cidade atrai são os chamados city users, indivíduos que vêm para a cidade durante um curto período de tempo, que pode ir até um ano. Estas pessoas tanto podem ser estudantes de Erasmus, como escritores, artistas ou reformados, explica João Seixas, uma “parte importante” do mercado que as cidades possuem.
Cátia tem uma carteira de estórias e relembra outro episódio na loja, desta vez com uma senhora que aluga quartos para um ano, no máximo. Normalmente arrenda a estudantes de mobilidade internacional ou de Erasmus e perguntou à operadora de caixa se conhecia alguém nesta situação. Cátia respondeu que não, mas contou-lhe que tinha acabado de mudar de quarto há uns dias e que se soubesse, tinha-se informado com ela, mas como eram arrendamentos curtos, não fazia sentido para ambas. “Mas a senhora disse logo que como era uma pessoa conhecida que não pensava duas vezes e que me alugava o quarto. O que é que me dá a entender nisto tudo? Não é a boa vontade dela, é toda uma questão de desenrasque porque nunca me iria propor isto se Lisboa continuasse no ritmo normal”.
E esta época seria uma das mais lucrativas, aponta Cátia: “Estas pessoas estavam no topo nesta altura, pelo dinheiro, por tudo. E ela nunca me iria propor isto e nem precisaria de o fazer se não fosse esta pandemia”, afirma. Afinal, como refere Gonçalo Antunes, o alojamento local é uma atividade económica para gerar lucro e “enquanto a situação estiver indefinida, parece-me a mim que [os proprietários] vão tentar empurrar um bocado a situação para voltar ao alojamento local clássico, que é bastante lucrativo e por enquanto fazer estes arrendamentos um pouco mais prolongados, mas curtos”.
Se, por um lado, as cidades assistem a uma regularização do setor imobiliário sob as mais diferentes formas, por outro, esta situação oferece as mais variadas possibilidades de habitação, desde arrendamentos por algumas noites, por dois e três meses, e por aí fora. Apesar da crise pandémica, as cidades vêm o florescer de novas oportunidades para quem quer arrendar por determinado tempo: “É fascinante que a cidade tenha essa capacidade e a revolução digital e tecnológica permitir esse centrifugar fabuloso de possibilidades. Isso é magnifico, no meu entender”, afirma João Seixas.
Porém, é preciso agora refletir sobre o que o vírus colocou em evidência nas cidades. Na opinião dos geógrafos, é preciso mais do que nunca ter em conta a importância de existirem cidades “mais diversas, mais vivas, com mais qualidade de vida”, refere João Seixas, que considera que “isso será um dos maiores objetivos do pós-Covid”.
Na sua opinião, “a cidade em Portugal é filho de um deus menor” porque “nunca foi percebida em Portugal como um objeto político de excelência”, e é esse um dos caminhos que deve continuar a ser trilhado. As previsões para um futuro próximo ainda são muito incertas, mas Gonçalo Antunes afirma que, neste caminho que se deve continuar a percorrer, a cidade “deve responder às necessidades das pessoas e aos que lá vivem, em primeiro lugar, e depois para o resto”. Mas antes, é preciso que as pessoas não pensem apenas em si próprias.
“Aflorou-se tudo aquilo que as pessoas são e estou numa sociedade que não me revejo”
Apesar da pandemia, Cátia decidiu mudar de quarto. Já conhecia a senhoria, com quem tem uma amizade, e a mudança não foi dramática. Agora está mais confortável na nova casa, que lhe permite descansar da azáfama do vírus. Na loja, passou por todas as fases: desde o gozo por parte dos clientes por ter que usar máscara ainda antes do Estado de Emergência, ao pânico do papel higiénico e, finalmente, com a rotura de stock do álcool etílico e do álcool gel. “Foi muito desgastante a nível psicológico”, afirma, “e ainda tive que educar as pessoas e dizer: «você deve só levar um álcool se não não vai haver para o próximo»”.
Cátia teve de se adaptar a novos hábitos de limpeza e à pressão do trabalho: “Tivemos alguns incentivos monetários da empresa, mas com isso tudo veio a sobrecarga de trabalho porque a maior parte das colegas tem filhos e tinham que estar em casa, enquanto algumas de nós que não têm filhos tinham de recuperar o tempo da loja”, explica. Além disso, a transição para as vendas online ainda acarretou mais trabalho para os funcionários.
O desgaste psicológico vinha precisamente dos clientes. Os idosos solitários que ficaram ainda mais sós com o confinamento, os histéricos com a transmissão do vírus e os mais relaxados que não tomavam precauções. “Toda a pessoa que entrava falava sobre o COVID-19 e para nós era desgastante”, conta Cátia.
Mas aquilo que mais a revoltou foi precisamente a falta de educação das pessoas: “Na pandemia ainda mais se notou que as pessoas vivem cada vez mais para o seu umbigo, sem se preocupar com as coisas do outro, sem se preocupar com os sentimentos do próximo”, enfatiza porque “eu senti muito isso, como profissional na área de supermercados, senti muita pressão e muita falta de educação e de compreensão entre as pessoas”.
O vírus apenas veio evidenciar aquilo que Cátia já pensava: “Aflorou-se tudo aquilo que as pessoas são e estou numa sociedade que não me revejo, nem um bocadinho”. A pandemia ajudou a evidenciar os excessos, os desequilíbrios e aquilo que deve ser repensado, seja no sector da habitação, seja em qualquer setor do nosso quotidiano.