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Lá vai a Mouraria toda despida e orgulhosa

Nascidos e criados no berço do Fado, os marchantes da Mouraria mostram o que é sentir orgulho pelo bairro e pelas Marchas Populares. Como? Ao tirar a roupa… literalmente. “Orgulho Bairrista” foi uma exposição a dois tempos sobre o bairro, as suas gentes e o receio do turismo.

“Nus? Como assim, nus? À frente do Andy?” O misto de espanto e de surpresa vincaram o rosto de Cátia Nunes. O desafio estava lançado. Tudo tinha sido preparado com antecedência, com o maior cuidado e respeito pelos moradores da Mouraria.

Naquele ano de 2015, o solstício de verão apresentava-se ligeiramente chuvoso. Dizem que nos casamentos é boda abençoada quando as gotículas tocam o chão. Mas neste caso, o encanto não seria o mesmo. Lisboa preparava-se para receber uma das maiores tradições da cidade, concentrada na Avenida da Liberdade: as Marchas Populares.

“Yé, yé, yé, a Mouraria é que é”, ouve-se durante o desfile dos bairros de Lisboa na hipotética passadeira vermelha da avenida. De saias rodadas de cor branca e preta, com apontamentos dourados nos corpetes que envergavam, os marchantes cantavam com orgulho, um “orgulho bairrista”, os versos da canção:

É minha e vossa a Mouraria
Que um dia nos viu nascer
(…)
Gente Fadista, feliz airosa
(…)
Lisboa antiga passa vaidosa
Na Mouraria, marcha a cantar!

No meio do grupo de cerca de 50 marchantes do Grupo Desportivo da Mouraria estava André Sousa. O marido de Cátia é marchante há 10 anos e aceitou o desafio antes do desfile. “Não esperava esse convite mas como era sobre o bairro, sobre a Mouraria, olhe, aceitei a 100 por cento”.

Pousar nus, livre de estereótipos, de preconceitos, de máscaras. Apenas o corpo e a alma. Esta era a primeira parte do desafio lançado por Iñigo Sanchéz, investigador do Instituto de Etnomusicologia (INETmd) da NOVA FCSH, e por Andy Dyo, fotógrafo profissional. O investigador já tinha “um pé na Mouraria”. Desde que as transformações no bairro histórico de Lisboa começaram, em 2011, que o professor de Ciências Musicais se dedica a estudar os fenómenos de transformação na paisagem sonora.

Iñigo falou com os dirigentes do Grupo Desportivo da Mouraria e explicou o que se pretendia: um projeto fora dos clichés normais e à parte da temática do Fado. Queria um trabalho visual que mostrasse a juventude presente numa tradição antiga. Um antes, os marchantes nus, na sua própria individualidade, e um depois, como parte de um todo, na marcha da Mouraria de 2015.

“Podia acontecer o melhor ou podia acontecer o pior. Podíamos ser corridos da Mouraria porque podiam pensar que éramos malucos em querer fotografar sem roupa” conta Iñigo. Mas a receção do pedido foi mais surpreendente do que podia imaginar: “Dos 16 marchantes que participaram nenhum deles tinha a experiência anterior de pousar num estúdio de fotografia e muito menos de pousar nus. E esse foi o grande desafio e eles aceitaram”, conta o investigador.

A primeira abordagem tinha sido feita. “No início foi estranho porque quando nos fizeram o convite ainda não tínhamos bem ideia do projeto que eles iam fazer. Na altura eu fiquei um bocadinho envergonhada e um bocadinho de pé atrás” recorda Cátia, marchante há sete anos. Pousar nus à frente de um fotógrafo era um grande desafio.

Mas a única sessão de fotografias que foi feita em conjunto foi a de Cátia e André. Aliás, uma sessão a três. Cátia estava grávida de quatro meses. Um menino. Aceitou participar: “Como estava grávida e podia aproveitar o momento para ter uma foto bonita com o meu marido e do bebé enquanto ainda estava grávida, foi um projeto engraçado”, ri-se. André não esperava o convite, mas a sessão de fotografias tornou o momento ainda mais especial: “Era o meu primeiro filho, na marcha e tudo. Foi uma coisa diferente”.

Alma, nervo e coração
Das cantigas da Severa
Olha o Bairro da Severa
Na noite de São João
(…)
Cigarras a cantar… Guitarras a vibrar
Cantigas a bailar pelas vielas
Crianças a correr… esperanças a nascer
E cravos a aparecer pelas janelas

Roseiras a florir… velhinhas a sorrir
Ungidas pela fé e p’la virtude
Fadistas a rezar… e sinos a tocar
Na igreja da Senhora da Saúde

A letra de Amadeu do Vale na voz de Amália Rodrigues são apenas alguns versos dos vários que musicam sobre a Mouraria. O objetivo do trabalho de Iñigo e de Andy era de mostrar um duplo orgulho: o individual e o de pertencer à marcha.

Um propósito que acabou por revelar outra realidade

“Cada retrato é diferente, mas em cada fotografia há algo de cada pessoa, enquanto que nas fotografias em que estão fardados, estão como parte integrante da marcha”, explica Iñigo. O objetivo deste projeto que teve início em 2015, que por questões financeiras e falta de apoios só em 2019 viu os holofotes, era de mostrar o duplo sentido do conceito de orgulho.

Por um lado, o orgulho individual, o de ser “vaidoso”. Por outro, o orgulho de pertencer à marcha do bairro, enquanto parte de um todo, um só conjunto: “Na marcha, de certo modo a individualidade desaparece porque todos vão fardados da mesma forma e têm de estar sincronizados, fazer os passos da mesma forma. A ideia também era pensar um pouco esta questão do uno, de maneira a sublinhar a identidade de cada marchante”, explica Iñigo.

As paredes acinzentadas ecoavam determinadas vozes. Eram de vários tons, ritmos e emoções diferentes. Cada uma falava sobre o que é pertencer ao bairro, o que a marcha significa para cada um. Parte das entrevistas de Iñigo, em vídeo, estavam a ser projetadas na Galeria de Santa Maria Maior, em Lisboa. Nas restantes salas, as fotografias dos 16 marchantes nus e vestidos com as fardas da marcha despoletavam algumas risadas dos próprios modelos e da sua família, ao ver o produto final exposto.

Mas o propósito deste projeto transformou-se com a cidade. O conceito inicial era o de dar voz aos jovens da Mouraria. Depois da requalificação do bairro em 2011, a opinião desta faixa etária sobre as mudanças nunca chegou a existir. “A ideia deste projeto era pôr o foco nesta juventude trabalhadora, pais de família, a dedicação pelo bairro e pela marcha, e um pouco para fugir de algum tipo de cliché ou de estereótipos negativos que a população tem”, aponta o investigador. Contudo, quatro anos depois, o propósito desta exposição iria revelar-se outro.

Uma “vila” dentro da cidade

O crescente turismo verificado na cidade tem despoletado uma migração de jovens e jovens-adultos (entre os 15 e os 39 anos) para a zona periférica da cidade, reporta uma investigação de Maria do Rosário Jorge, Luís Vicente Baptista e Jordi Nofre, investigadores do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA) da NOVA FCSH. Os autores apontam que os Censos de 2011 mostravam que esta fatia da população se encontra a residir nestas zonas, o que reforça a fraca capacidade de Lisboa fixar os mais jovens no centro da cidade.

Lisboa está mais envelhecida no que se refere aos residentes, mas viva nas habitações temporárias, principalmente por jovens estudantes e de Erasmus. A requalificação dos bairros históricos, como a Mouraria, tem aumentado o turismo e o número de alojamentos para este efeito.

“Nós saímos à rua e conhecemos toda a gente, agora se calhar um bocadinho menos por causa do turismo”, afirma Cátia, “porque agora os bairros populares estão mais feitos para o turismo do que propriamente para as pessoas que vivem cá, mas conhecemos praticamente todas as pessoas quando saímos de casa”. Este é o receio da maior parte dos residentes: A Mouraria ser dos turistas.

André também mencionada as transformações sentidas: “A Mouraria é uma família no bairro, mas já foi mais por causa dos hostels e isso, mas continuamos unidos”. Mas antes “era muito melhor, [éramos] muito mais unidos mas também haviam mais pessoas no bairro”. Mas a família, essa, mantém-se, acrescenta André.

“Nas entrevistas que fizemos aos marchantes sobre as fotografias, sobre o projeto, sobre a marcha, sobre o bairro, aparece muito esta preocupação sobre o turismo”, recorda o investigador. Um medo e uma preocupação que ficou vincada na exposição.

Mouraria garrida, muito presumida,
Muito requebrada,
Com seu todo gaudério,
Seu ar de mistério,
De moura encantada!
É como um livro de novela,
Onde o amor é lume
E o ciúme impera!
Ao abrir duma janela
Parece o vulto
Daquela Severa!

“O Fado pertence à Mouraria” enfatiza Cátia. É uma tradição, um tema que é parte da marcha da Mouraria. O filho de Cátia e André, agora com três anos, já assiste à marcha e entusiasma-se com a alegria que paira no ar. O casal pondera que o rebento, em 2020, seja a mascote da marcha.

O trabalho de Iñigo e de Andy foi mais do que um projeto. Transformou-se num pilar para os marchantes, refere Cátia: “Eles foram um grande apoio, investiram muito tempo em nós, por causa do projeto deles, mas acabaram por ser muito importantes”.

Iñigo Sanchéz já é “parte da Mouraria” vinca a marchante, e este projeto reflete a confiança dos moradores nos dois profissionais. A Galeria de Santa Maria Maior, na mesma freguesia de Lisboa, acolheu a exposição “Orgulho Bairrista” até 22 de março de 2019.

A pergunta “Mouraria ainda está viva? “ foi respondida com o espírito bairrista de André: “Espero bem que sim e que esteja por muito mais anos!”.

Ana Sofia Paiva

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