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No leito do tempo

É uma verdadeira preciosidade para a arqueologia subaquática: uma ânfora romana que ficou intacta durante 2000 anos, no fundo do estuário. Como se fosse um capítulo do grande livro de história que são os vestígios sepultados nos sedimentos do rio Arade e permitem traçar um retrato da navegação entre o Mediterrâneo e o Atlântico, desde a Idade do Ferro até aos nossos dias. E com naufrágios à mistura, como convém aos bons enredos. Relato de uma sessão de mergulho em Portimão com uma equipa de investigadores do CHAM — Centro de Humanidades, da NOVA FCSH.

A ânfora está agora mergulhada num tanque de água doce, nas instalações do Museu de Portimão, onde serão feitos os trabalhos de conservação. Foi retirada intacta do fundo do rio Arade, numa das sessões de mergulho que têm ocupado a equipa do CHAM durante o mês de junho. É um achado raro, como conta com visível entusiasmo Cristóvão Fonseca, o responsável pela campanha arqueológica, cujos resultados serão analisados na sua tese de doutoramento: “Sabemos que se trata de uma ânfora do tipo Dressel 1, que era usada para transportar vinho.”

Trata-se de um recipiente de cerâmica produzido entre o século II e meados do século I a.C., na costa ocidental da Península Itálica, esclarece o investigador. É um testemunho da relação do atual Porto de Portimão com a navegação proveniente do Mediterrâneo e uma prova da riqueza da foz do rio Arade, que tem um verdadeiro manancial de dados históricos ainda por estudar. Outro aspeto particularmente importante para um arqueólogo é o facto de ser o primeiro exemplar recolhido inteiro de uma escavação arqueológica em território nacional.

A ânfora foi retirada mesmo na embocadura do rio, de um local que Cristóvão Fonseca considera paradigmático da complexidade da área, pela extensão temporal e pela diversidade de vestígios que guarda. “Há vários contextos de naufrágio, assim como de fundeadouro, tanto romanos como de época moderna”, especifica.

A montante do sítio onde foi recuperada a ânfora (denominado Arade B) decorre a sessão de mergulho que acompanhamos, que tem como objetivo continuar a fazer o registo de um navio naufragado. Sabe-se por alguns pormenores que o GEO 5 (a sua designação de estudo) terá sido construído entre finais do século XVIII e meados do século XIX. “A forma do cavername [o chamado esqueleto de madeira do navio], mas também o facto de a cavilhagem ser feita de uma liga de cobre, assim como o segundo forro, permitem estabelecer um intervalo de construção relativamente curto”, esclarece Cristóvão Fonseca.

Missão ao som da discoteca

Os trabalhos começam numa zona descampada da margem esquerda do rio, não muito distantes de um pescador que espera atentamente um sinal da sua cana. É aqui que fica instalada a estação total, como se designa a sucessora dos velhos teodolitos, sob os cuidados de Gonçalo Lopes, da equipa de arqueologia, e de Nuno Silva, técnico do Museu de Portimão. Servirá para tirar os pontos rigorosos que desenham o navio, mas para isso é preciso esperar que a equipa de mergulho esteja a postos.

Os arqueólogos vão-se revezando nos trabalhos subaquáticos. Desta feita, é a vez de Inês Coelho e Cristóvão Fonseca mergulharem. O investigador posiciona um cabo no ponto do casco que será georreferenciado. Instantes depois, Inês imobiliza o ponto de mira que está à superfície, ligado ao cabo. Depois de alinhada a estação total com o ponto de mira, é altura de Patrícia Carvalho, que também está a bordo, comunicar para a margem, avisando Gonçalo de que é o momento de registar as coordenadas. Cumprida a tarefa, José Bettencourt acelera por duas vezes o motor da embarcação, sinal para que Cristóvão continue o trabalho debaixo de água, com a marcação de mais um ponto. O procedimento repete-se até se somarem quatro pontos, o objetivo definido para esta sessão de mergulho. Aos poucos, o desenho do navio vai tomando forma na prancheta que acompanha os mergulhadores e que tem um chumbinho acoplado para ajudar a submergir.

Trabalhar debaixo de água tem as suas peculiaridades que não se restringem às propriedades do material. A visibilidade é uma condição determinante. Neste caso, obriga a enfrentar a corrente mais forte da vazante: as águas são muito mais turvas quando o rio está a desaguar, devido à quantidade de sedimentos que transportam. Mas, sessão a sessão, tudo o que está exposto do GEO 5 vai sendo registado, com as respetivas coordenadas, na prancheta, de forma a ser depois transposto para desenho de computador.

“Já tínhamos feito uma planta preliminar em 2004, mas agora, com o auxílio da estação total, o registo é muito mais rigoroso”, diz Cristóvão Fonseca. “O facto de a estrutura do navio estar bastante mais exposta também ajuda.” Por outro lado, o trabalho está a decorrer numa altura fundamental, uma vez que as condições dos fundos arenosos podem vir a sofrer alterações. “Era importante fazermos este levantamento antes que comecem as obras de abertura do canal de navegação, cujas dragagens podem modificar o que fica visível”, acrescenta o arqueólogo.

A bordo do semirrígido, Patrícia dá uma mão a Inês, ajudando-a a sair de dentro de água. Aos poucos, a ligação ao passado do fundo do rio vai ficando mais distante, enquanto a realidade de um dia de verão vai tomando lugar. A música em decibéis de discoteca que vem de um grande barco de recreio volta a captar a atenção, agora que a equipa de arqueologia navega de regresso ao cais.

Este é um projeto que conta com o apoio e a colaboração de diversas entidades que podem ser consultadas com pormenor aqui.

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