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Portugal, Drogas & Feitiçaria: há cinco séculos era assim

Uma plantação de ópio esteve para nascer no país, o tabaco cheirava-se e a canábis servia para tratamentos capilares. Há 500 anos, existiam formas diferentes para alcançar os estados alterados de consciência.

Tudo começou com uma enxaqueca e um possível casamento. Catarina de Médicis, rainha de França entre 1547 até 1559, sofria de dores de cabeça e Jean Nicot, embaixador de França em Portugal a negociar o casamento entre D. Sebastião e Margarida de Valois, enviou para a rainha umas folhas que talvez lhe pudessem aliviar as dores.

Essas folhas eram de tabaco. Depois de Damião de Góis lhe ter mostrado os efeitos da inalação do tabaco, Nicot ficou fascinado com os resultados que a planta despertava nas pessoas e enviou-as para o seu país. O sucesso foi total. Não só as enxaquecas diminuíram como, em 1560, Nicot introduziu o tabaco na corte francesa para ser cheirado. A palavra espalhou-se como o vento e o tabaco começou a ser popular na Europa, em especial nos países do Norte, sendo o tabaco responsável pela remoção de narizes em Moscovo no início do século XVII.

Este tipo de folhas que Nicot enviou para Catarina de Médicis pertence ao género Nicotiana, nomeada em honra do apelido do embaixador. O tabaco, sabe-se através de fontes históricas, ganhou popularidade apenas na segunda metade do século XVII no país: “Em Portugal, [parece que] tínhamos um consumo ainda muito ligado ao que tínhamos visto nos indígenas, ou seja, ainda muito ligado a cheirar-se rapé, e ao mesmo tempo, em materiais perecíveis”, descreve Miguel Martins de Sousa, antigo aluno da NOVA FCSH, que realizou uma dissertação de mestrado em Arqueologia sobre os estados alterados de consciência nos registos arqueológicos da Idade Moderna.

Contudo, o motivo para se inalar tabaco ia muito mais além do que a influência dos indígenas. É que a religião cristã, fortemente presente no país, via a fumosidade como algo negativo, “porque o fumo em si era muito ligado às tribos indígenas e nativos, e não era muito católico de se ver”. O tabaco assumiu-se, assim, como um elemento muito importante na expansão marítima portuguesa, tal como o café, o açúcar, o chocolate e o chá.

Mas como se consumia o tabaco? Podia-se inalar, mastigar ou fumar através de cachimbos. O mais curioso é que estes últimos utensílios, em Portugal, eram associados à plebe e aos marinheiros. Contudo, se um estrangeiro utilizasse cachimbo, era visto com bons olhos e admiração.

No Terreiro do Trigo, hoje Alfândega de Lisboa, encontraram-se um conjunto de cachimbos: “Temos uma pequenina coleção na Rua do Terreiro Trigo, mas foi possível observar três proveniências distintas: Países Baixos, Inglaterra e, talvez, a Península Balcânica, ainda que não se tenham apurado cachimbos de produção nacional” explica Miguel Martins de Sousa. Há evidências que na Rua Damasceno Monteiro, em Lisboa, surgiu o primeiro centro de produção de cachimbos de barro vermelho nacionais, relacionados com as olarias do Monte de São Gens. Mas as grandes indústrias com mais expressão no país eram as da Inglaterra e dos Países Baixos.

Pormenor de painel de azulejos, século XVIII, Sé de Viseu. Créditos: Miguel Martins de Sousa, 2019.

O tabaco era consumido nas embarcações modernas, sabe-se hoje, devido à descoberta de cachimbos nos navios Boa Vista 1 e Boa Vista 2, identificados na Avenida 24 de Julho, em Lisboa, e nos fragmentos encontrados na Ria de Aveiro, e na baía de Angra do Heroísmo, na ilha da Terceira, Açores, aponta o investigador na dissertação de mestrado. Também evidências demonstram que em conventos femininos se consumia tabaco em ocasiões festivas.

As drogas do século XV até ao século XVIII eram diferentes das de hoje, principalmente quando se fala no tabaco. A maior diferença é que atualmente existem mais drogas sintéticas: “Na altura tínhamos o tabaco, mas era puro, não era industrial, e isso é interessante porque o tabaco que nós consumimos atualmente leva determinadas substâncias que o tornam mais aditivo”, mas há cinco séculos “o tabaco que era consumido era em muito menos quantidade e provocava outro tipo de efeitos mais «xamânicos»”, ou seja, deixava os consumidores mais alienados.

O caso de estudo que Miguel Martins de Sousa investigou na dissertação foi o da Rua do Terreiro do Trigo, em Alfama, através do trabalho levado a cabo por José Pedro Henriques, da empresa arqueológica Cota 80.86. Encontraram-se nessa lugar vários fragmentos de cachimbos de caulino, de cerâmica e de barro negro.

Representação da Rainha Nzinga (ou D. Ana Sousa) sentada com os seus servos a observar um baterista por Antonio Cavazzi, c. 1660-1670 (Slavery Images, 2020)

No século XVII, o consumo de tabaco torna-se um hábito mundial, principalmente através da Rota da Seda. Portugal introduziu o tabaco no Império Persa e no continente asiático, em cidades como Goa, Macau e Nagasáqui. Contudo, não era só o tabaco que podia interessar economicamente a Portugal.

A (quase) capital de ópio e a canábis para a queda de cabelo

Outra substância muito utilizada à época era a papoila-dormideira. É desta planta que se extrai o ópio. Em 1874, foi dada a ordem para plantar uma mão cheia de dormideiras nas margens do Rio dos Bons Sinais, em Moçambique, pertencente ao Reino de Portugal. A observação dos efeitos do ópio, oriundos do Egito, Bengala ou de outras regiões, é demonstrada por Tomé Pires:

 “os homens acostumados a comê-lo andam sonolentos, desvairados, com os olhos vermelhos, não andando em seu sentido”

Por outro lado, Garcia de Orta atenta numa faceta do ópio mais afrodisíaca. O médico constata que na Índia há também alunos portugueses a consumir, logo “não são só os indianos [vinda da Índia] e com certeza havia muitas pessoas, há todo um intercâmbio global e cultural”, explica Miguel Martins de Sousa.

Com a adição das populações, D. Afonso de Albuquerque escreveu uma carta ao rei D. Manuel I, em 1513, a contar-lhe sobre o lucro que o Reino de Portugal poderia obter: “Aconselha a plantar não em Portugal, mas nos Açores, porque os Açores estavam muito em voga para ir para lá e plantar”, conta o investigador. “Na altura, plantava-se a cana de açúcar, mas não teve o sucesso esperado e o ópio poderia ser um bom investimento”. Contudo, a plantação do ópio acabou por não avançar.

Paralelamente, as folhas das plantas que provocam alienação podem ter efeitos curativos. Por exemplo, existia uma receita que incluía a folha de canábis para a queda de cabelo, escrita por um boticário do Mosteiro de São Vicente de Fora e que podia ser vendida nas boticas civis, desde que a receita fosse partilhada. A utilização destas substâncias psicoativas e naturais deram a fama de bruxos ou feiticeiros aos curandeiros. Miguel Martins de Sousa esclarece que “as boticas não têm nada que ver com a feitiçaria”, mas que apesar disso houve “feiticeiros” que se tornaram célebres, como João Baptista de São Miguel, conhecido como Joãozinho.

Também os mosteiros tinham as suas boticas, nomeadamente o do Mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa: “Todos os mosteiros teriam uma enfermaria e teriam um espaço dedicado à confeção do que chamamos hoje medicamentos, destas mezinhas”. Por isso, a rivalidade começou a surgir com as boticas civis, mais tarde conhecidas como as primeiras farmácias que vendiam medicamentos cada vez mais químicos e sintéticos. Mas ambas eram bem vistas na sociedade.

Os milagres e a caipirinha

Com a expansão portuguesa houve também uma proliferação de “novas e inovadoras bebidas” e a caipirinha foi um desses exemplos. Miguel Martins de Sousa investigou elementos em vidro, que se podem associar com o consumo de bebidas alcoólicas encontrados no Largo do Duque de Cadaval, no Rossio, em Lisboa. Curiosamente, o palácio dos Duques de Cadaval foi destruído pelo terramoto de 1755 e, quase um século depois, deu lugar à estação de comboios do Rossio.

Parte das evidências e registo fotográfico a que o investigador teve acesso foram recolhidos por Tânia Manuel Casimiro, investigadora no Instituto de História Contemporânea (IHC) da NOVA FCSH e do Instituto de Arqueologia e Paleociências da Universidade Nova de Lisboa que, em conjunto com outra arqueóloga, investigou as estruturas do palácio pré-terramoto.

Palácio do Duque de Cadavais. Créditos: Estúdio Mário Novais, 1973

Para além disso, encontraram-se num dos compartimento oito fragmentos de vidro utilitário do século XVIII, correspondentes a um cálice, dois frascos de pequena dimensão e três fundos de garrafas século XVII. Estas descobertas revelaram que a sua utilidade poderia estar relacionada com produções mais globais, dado que foram encontrados outros achados semelhantes deste período em Lisboa e em vários outras cidades de todo o mundo.

Ana Sofia Paiva

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