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Violência doméstica: Conhecer o lado dos agressores

A violência doméstica constitui o segundo crime com maior taxa de reincidência no país. Quais as razões que levam os agressores a praticar este crime? Uma investigadora da NOVA FCSH propôs-se estudar o outro lado das agressões.

No Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), fruto da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) e da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), tudo começa com a negação: “«Sei que tenho de cumprir o programa, mas não fiz nada disso. Disseram que bati, não é verdade, posso ter-lhe encostado o dedo uma vez», portanto começa pela negação”, explica Dalila Cerejo, investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciências Socias (CICS.NOVA) e membro do Observatório Nacional de Violência e Género (ONVG), sediado na NOVA FCSH.

A onda começa com a negação. Depois, o formular do círculo quase perfeito da água representa a segunda fase, em que a agressão existiu “mais ou menos”. Quando a onda se enrola, o discurso do agressor modifica-se para “existiu um episódio, mas não teve importância”. Por fim, quando a onda finalmente rebenta, é quando os indivíduos admitem que existiu uma agressão que, na maioria das vezes, resulta do facto de as vítimas se negarem a uma ordem do agressor: “Tu não fizeste o que eu quis, então tive que usar de uma ferramenta que foi a violência”, explica Dalila Cerejo.

E a onda, depois de molhar o areal, regressa ao mar, tal como a negação, que retorna ao autor do crime. “Há esta forma de desculpabilização por um lado e desvalorização dos atos [por outro]”, explica a investigadora. O projeto de pós-doutoramento “Nas teias da violência conjugal: a construção social das emoções em vítimas e agressores”, incubado no ONVG, parte da tese de doutoramento (2014) na NOVA FCSH de Dalila Cerejo, em que investigou o lado da vítima, do sexo feminino. Munida de vários conhecimentos, decidiu avançar e conhecer o outro lado da face da violência na intimidade, na perspetiva masculina. Este trabalho ainda está em curso, mas a investigadora já entrevistou 25 homens entre os 20 e os 68 anos no PAVD.

Os indivíduos são de vários setores, desde estudantes a empresários. Dalila Cerejo percebeu que a desculpa para o uso da violência era a de que não havia outra alternativa. A agressão era a única saída. “Nós estamos a falar em cenários muito graves para as mulheres, com tentativas de homicídio, com vidros espetados no pescoço, estamos a falar de agressões graves”, recorda. Mas a violência psicológica é ainda mais desvalorizada porque raramente se consegue provar em tribunal, é a palavra da vítima contra a do agressor.

Porém, a violência psicológica é aquela em que, curiosamente, as vítimas se queixam mais porque “é uma violência que lhe descasca, digamos assim, a sua ideia, a sua conceção do Eu. É uma violência que a vai sentindo nada, que a vai sentir pequena, inútil”, logo acaba por ser “uma violência que mexe com o core mais profundo da entidade da mulher e é uma violência que mais lhe custa”. No entanto, é uma das agressões mais menosprezadas na ementa da violência.

Os mitos e falácias de um agressor

Quantas vezes se ouve “ele é assim porque os pais também eram” ou “tem um trauma, o pai batia-lhe muito, por isso é que ele é como é”? Demasiadas vezes, quantas mais para justificar determinada atitude. Mas Dalila Cerejo revela que isso é uma falácia perpetuada na sociedade porque, para se justificar, era necessário acompanhar o indivíduo desde a infância e durante o seu percurso, para se saber se realmente essa criança será, futuramente, um agressor.

Como não é possível fazê-lo, não se pode partir do pressuposto que alguém reage devido a um trauma. Mas também é preciso desmistificar comportamentos emocionais entre géneros. “Há um quadro emocional específico, que a sociedade faz questão de crer que é indispensável para cumprir a sua função, seja de mulher, seja de mãe, seja de filha, de estudante”, aponta a investigadora, e são esses quadros que hoje se refletem na sociedade, e também entre vítima e agressor.

O modelo de família burguesa que vem desde o século XVIII “empurrou” a mulher para a esfera do doméstico, do cuidado com os filhos, do cuidar da casa, de manter equilibrada a harmonia familiar, enquanto que o homem era o sustento da família, o que resolve os problemas mais complicados na esfera profissional e pública.

Dalila Cerejo é desde 2010 investigadora no Observatório Nacional de Violência e Género. É também investigadora no CICS.NOVA.

É por esta razão que se se refletir nas emoções que são “essenciais para vencer na arena do domínio público”, tais como a competitividade, a pré-disposição para o conflito, a perseverança, alguma virilidade e também um pouco de agressividade no discurso, estas são atribuídas aos homens.

Contudo, as mulheres acabam por ser conotadas como mal-educadas ou malformadas se repetirem estas mesmas emoções: “Legitima a ideia de que nós como sociedade permitimos um léxico emocional muito mais relativo a emoções de confronto no masculino do que no feminino”.

Ou seja, por um lado a sociedade permite, no quadro emocional masculino, mas no feminino censura. E é por isso que a vergonha e a culpa, duas emoções recorrentes na violência na intimidade, são sentidas de forma diferente pelo homem e pela mulher.

O outro lado da vergonha e da culpa

“Eu não te queria bater, mas tu…”. Esta é uma das frases utilizadas pelo agressor para que a vítima se sinta envergonhada e culpada. E é uma ferramenta eficaz. A vítima acaba por olhar para dentro de si e encontrar uma razão para o ato, mesmo que não exista na realidade. Estas são emoções “muito importantes, quase que um motor social da inação, eram emoções sociais que iam ajudando, mantendo digamos assim, a mulher encurralada nas relações íntimas”.

Entrevistada: «Porque é que nunca contou a ninguém?

Maria: Por vergonha, por vergonha e de as pessoas dizerem, as vizinhas, “porque é que você não o larga? Porque é que não lhe fecha a porta e muda a fechadura?” Eu tinha medo do escândalo, tinha medo… toda a gente dizia que ele era muito bom. “ah ele é muito bom. Depois já me sentia com vergonha de estar a deixá-lo”

Entrevistadora: Mas porque é que tinha essa vergonha?

Maria: Tinha medo que as pessoas me censurassem, porque fui porque eu quis e ninguém me obrigou a casar com ele.»

Maria foi uma das vítimas entrevistadas por Dalila Cerejo na tese de doutoramento. No total, entrevistou 30 vítimas de violência doméstica. Este sentimento de vergonha acaba por impedir a denúncia e abraçar todos os sentimentos para dentro de si, para o íntimo, aprisionando-as nestes ciclos de violência.

Já nos agressores, o esquema é diferente: “A experiência da vergonha fá-los agir de forma explícita e muitas vezes mais do explícita, de uma forma violenta”, ou seja, enquanto a vítima esconde para si o sentimento, o agressor masculino demonstra a sua vergonha em forma de violência.

Só em 2019, foram registadas 11.676 vítimas de violência doméstica, ao passo que 11.836 autores dos crimes foram contabilizados, o que demonstra que há mais agressores do que vítimas, aponta o relatório da APAV de 2019. No mesmo, 66 por cento dos autores do crime são homens, com a prevalência mais alta de agressão nas idades entre os 35 e os 64 anos. A percentagem mais alta sobre o crime de violência doméstica aponta para o cônjuge (18,7%), seguido do(a) companheiro(a) (9,8%). O local onde ocorrem as agressões são na residência comum (51,2%), indica o mesmo relatório.

Rómulo Mateus, diretor da Reinserção e Serviços Sociais, acha que o Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD) tem sido “eficaz” e que “tem conseguido dar algumas boas respostas e tem conseguido mudar alguns comportamentos e crenças, sendo eficaz na sua ação”, referiu em declarações à agência Lusa.

Desde 2014, disse o diretor, passaram 9061 pessoas, sendo que o modelo já foi readaptado. Em relação à taxa de reincidência do crime, o número “ainda não está identificado em Portugal”, aponta, sendo que desde 2015 apenas voltaram à prisão 22,7% dos indivíduos.

Dalila Cerejo acredita que o programa deveria focar-se mais nos estereótipos de género. “Mas não o fazem. Fazem-no num primeiro ao segundo módulo de trabalho com os agressores, e depois esse aspeto acaba por não ser mais repassado”, o que “é uma pena”.

Durante os 18 meses em que os indivíduos são acompanhados por um profissional, a intervenção é feita através de um manual psico educacional, onde os agressores trabalham as suas competências e emoções, nomeadamente a gestão da raiva e da fúria, porque “a forma de gerir emoções como a vergonha é fraca”, afirma Dalila Cerejo.

Se por um lado as mulheres são vítimas de violência íntima dentro de casa, os homens, por outro, acabam por ser mais vítimas de agressão. “Mas calma, é de uma violência totalmente diferente” começa por explicar a investigadora. Os dados do estudo de 2007 e de 2016, o primeiro inquérito municipal em Lisboa, mostram que os homens sofrem de violência na rua e no trabalho, por parte de outros homens. “São vítimas de amigos, colegas de trabalho ou desconhecidos. Não é uma violência no contexto da intimidade, não é uma violência feita pelas suas companheiras”. O agressor passa a ser, fora de casa e no reverso da moeda, vítima.

Ainda não há muitos estudos nacionais sobre os agressores, talvez por que ainda exista algum preconceito, aponta Dalila Cerejo, porque “a ideia de estudarmos um agressor em contextos de violência, em contextos que às vezes são de facto penosos” mexe com o ser humano. Mas entender o âmago do que causa este crime é fundamental para diminuir as agressões que, em muitos casos, não têm um final feliz.

Ana Sofia Paiva

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