Se visse uma quantidade de alimentos comestíveis no caixote do lixo era capaz de ir buscar? Há quem o faça e uma das razões é para combater o desperdício alimentar praticado por supermercados. Este é o mundo do freeganismo, onde nada se perde.
Numa saída à noite, em fevereiro de 2018, Metella Senni encontrou um amigo num bar de Lisboa. Tinha uma mochila cheia de comida e a italiana estranhou. Resolveu perguntar-lhe: “Ele começou a explicar-me o que fazia e disse-me que tinha ido apanhar uns legumes e convidou-me para ir com ele. Desde aí nunca mais parei”. O amigo da italiana levou-a a apanhar comida nos contentores do lixo.
Metella tornou-se respigadora. Trocou Bolonha por Lisboa para frequentar o mestrado em Antropologia na NOVA FCSH e naquela noite, em que encontrou o seu amigo, conduziu-a para uma prática que começa a ser cada vez mais conhecida, o freeganismo, assunto que a fez dedicar-lhe a sua dissertação de mestrado e, atualmente, o estágio no organismo Taste Before You Waste, em Amesterdão, ao abrigo do programa ERAMUS+ da NOVA FCSH.
O freeganismo nasceu espontaneamente em movimentos ambientalistas das décadas de 1960 e 1970 e, mais tarde, em 1980, nasceu o movimento Food Not Bombs que tinha como objetivo a recolha de alimentos vegetarianos descartados para serem distribuídos em jantares comunitários. O termo começa a ser cada vez mais utilizado e em 1999 surge o manifesto sobre o tema.
A junção das palavras “free” (livre, em inglês) diz respeito à gratuitidade dos alimentos e objetos, e “vegan” ao estilo de vida vegan ou vegetariano. Na dissertação de mestrado, Metella refere que também indivíduos que não são adeptos destes regimes alimentares também fazem o dumpster diving (mergulho no lixo, em português) ou a respiga, que é como quem diz, recolher alimentos que estão no lixo.
“Primeiro foi a curiosidade em ver como é que as pessoas vão para o lixo encontrar comida. Isso é uma coisa que normalmente não pensamos porque a comida compramos no mercado”, explica Metella. Esta foi a primeira razão que a fez acompanhar o amigo. Em segundo, porque “me dei conta que aquilo era muito interessante, porque também nunca sabemos o que vamos encontrar no lixo” e as amizades que se fazem na respiga.
Metella não se considera freegan. Admite que tem algumas práticas, mas não assume essa identidade. Os freegans são, por norma, pessoas que se autossustentam: gastam o mínimo de dinheiro, não compram alimentos ou vestuário, vivem com aquilo que a natureza lhes proporciona e o que é desperdiçado no lixo.
Em 2017, Pedro Serra realizou um documentário que retratou o estilo de vida dos freegans. O Wasted Waste é a segunda longa metragem do realizador, ideia que surgiu na primeira (“Estranha forma de vida”) sobre comunidades autossuficientes na Península Ibérica. O freeganismo entrou na vida profissional do realizador e percebeu que, para além da pouca informação sobre o tema, a que havia estava deturpada.
“Como o objetivo do meu trabalho é mostrar coisas que ainda são um bocado tabu ou que vejo que há necessidade de mostrar porque ainda não há essa informação, comecei a ponderar e a fazer investigação sobre como estava esse movimento em Portugal”. E o resultado foi um punhado de testemunhos, dos poucos que consideraram falar com Pedro Serra, devido ao medo das represálias de ir recolher comida ao lixo ou que este trabalho fosse apenas mais um que iria cair mal na opinião pública. “90% das pessoas que contactei não quiseram dar a cara, mas depois consegui alguns contactos de pessoas que também já conheciam o meu trabalho, o que também ajudou porque já sabiam a direção dos projetos”, explica Pedro.
Também Metella conseguiu chegar a 10 respigadores para a dissertação de mestrado. “Eu tinha a vantagem de que já participava, então as pessoas já tinham conhecimento de quem eu era e comecei a falar sobre a tese e a maioria das pessoas achava muito interessante”. A maioria dos respigadores eram estudantes de outros países e apenas duas pessoas eram portuguesas. Para Metella, talvez a razão se prendesse com o facto de esses estudantes de outros países já estarem habituados a fazer a respiga nos seus países e considerem a mesma acessível em Lisboa.
O documentário de Pedro começou a ser produzido entre Lisboa e Porto. Abílio Costa foi um dos que deu a cara no documentário. Deixou a vida de empresário, um SUV de 80 mil euros e compreendeu que o trabalho não era tudo na vida: “Ele percebeu que aquilo não era vida para ele, trabalhava imensas horas por dia, o corpo começou a ressentir-se e percebeu que aquele não era o caminho e fez uma mudança radical”. Esta transformação na vida de Abílio tornou-o mais feliz e mais autossuficiente: tem a sua própria eletricidade, água, vestuário e vive mais saudável.
“O que está errado não é apanhar comida do lixo, o que está errado é as pessoas deitarem comida no lixo”. Esta é uma das frases que se ouve no documentário, dita por Raghu, freegan, que cozinha com comida recolhida no lixo para dar aos pobres. Raghu não gasta dinheiro, vive confortavelmente e utiliza tudo o que a natureza lhe dá: a água da chuva serve para se lavar e beber água, a comida do lixo para se alimentar e alimentar os outros.
Contudo, apesar do movimento contra o capitalismo e desperdício alimentar começar a ter mais adeptos, há quem despreze esta prática. Enquanto Pedro estava a filmar o documentário e saiu com Raghu para a respiga, sentiu o estigma de quem passava: “Muita gente olhava de lado com desdém. Até aconteceu uma situação em que ele [Raghu] pousou uma caixa com legumes que tinha apanhado e foi buscar outras coisas, e quando voltamos a caixa estava espalhada, alguém deu um pontapé ou alguma coisa”, recorda. Apesar disso, há quem o conheça e já lhe guarde coisas que têm o prazo a terminar e que, de outra maneira, iriam acabar no lixo.
Mas como saber se os produtos estão próprios para consumo? Quais são os cuidados a ter? Há regras, não definidas por documento, que determinam como é o processo da respiga deve ser feito e como os produtos devem ser selecionados por quem os apanha.
Aproveitar ou não aproveitar? Eis a questão
O contentor do lixo é estereotipado como algo de repugnante e desagradável, vinculado às pessoas sem-abrigo que vasculham os sacos nos contentores. Mas ao analisar, Metella percebeu que não é bem assim: “Da minha experiência pessoal eu vi como muitas coisas colocadas nos caixotes são coisas perfeitamente comestíveis e é possível separar as coisas comestíveis das outras coisas” e dá um exemplo “num saco com legumes é possível ver as coisas que amadureceram demasiado e o que dá para consumir”, explica.
Há regras que não estão escritas, mas que todos sabem: os respigadores devem deixar os locais limpos e privilegiam a partilha de alimentos com quem mais precisa. Marta Cerqueira, editora executiva da Magg, escreve, além de notícias e reportagens, crónicas sobre sustentabilidade e faz, ocasionalmente, a respiga em Lisboa.
A primeira saída que fez foi sozinha. “Lembro-me que já estávamos a tirar a comida dos contentores e a dividir por todos e apareceu um senhor, esse sim com um ar de sem abrigo, e nós demos-lhe grande parte da comida, até daquela comida pré-feita, mais fácil para ele poder comer”, conta.
A verdade é que este tipo de recolha é feito por pessoas que, na maioria, não têm problemas a nível financeiro. É o caso de Marta: “Faço [a respiga] sem qualquer tipo de vergonha, mas eu tenho dinheiro para aquele tipo de comida, só acho uma vergonha a quantidade de comida que vai para o lixo”, afirma.
O caso português mais recente foi partilhado nas redes sociais do DJ Van Breda e do amigo João Siragusa. Após a dica de uma amiga, os dois decidiram ir ao contentor do lixo de um supermercado após a hora do fecho. O resultado foi surpreendente para os amigos: Quilos de fruta e pão com o prazo de validade que expirava nesse dia, produtos que ainda estavam comestíveis e que podiam ter sido o alimento para quem precisava.
Contudo, na respiga, a higienização é outro assunto que se deve ter em atenção, aponta Metella. É preciso saber desinfetar os produtos, que são na maioria pão, fruta, legumes, alimentos empacotados e, menos frequente, carne e peixe, e escolher quais estão aptos para congelar e quais devem ser logo cozinhados. A acrescentar, ainda há falta de literacia para saber interpretar os rótulos dos produtos.
Não deveria haver vergonha neste tipo de prática, afirma com convicção Metella: “O estigma devia recair sobre as lojas que estão a desperdiçar comida e não sobre as pessoas que a vão buscar ao lixo”.
Do lixo para a mesa: o luxo de comer produtos que são deitados fora
Anna Masiello vive em Lisboa e faz da respiga um modo de vida para combater o desperdício alimentar. E não só. A italiana transforma chapéus de chuva em roupa, uma forma de reduzir o desperdício. Na conta de Instagram da marca, R-Coat, todos podem ajudar: há um mapa que localiza os sítios onde as pessoas podem deixar os chapéus de chuva partidos e que depois são recolhidos por Anna.
A recolha de comida tem sido testemunhada na sua conta pessoal do Instagram, onde mostra o que encontra em 10 minutos no lixo. Marta Cerqueira fez uma reportagem com a respigadora e acompanhou-a numa saída: “A primeira coisa que eu vi foi no Instagram da Anna, que faz muito pelo desperdício alimentar e fiquei chocada com a quantidade de comida que ela trazia do lixo”, conta.
Além disso, Anna dá dicas aos seguidores de como podem ser sustentáveis com pouca coisa, à semelhança de Marta, que partilha não só nas redes sociais, mas também nas crónicas da Magg. “Nisto do desperdício ou da sustentabilidade nós não inventamos a roda, ou seja, estamos a pegar em coisas que antes os nossos avós faziam”, como por exemplo “comprar a granel, ir comprando conforme é preciso ou reutilizar produtos como os legumes. De repente as pessoas perceberam que é possível fazer coisas com a rama das cenouras ou com as cascas da batata”, afirma a jornalista.
O desperdício alimentar é um assunto sério. E, para Pedro Serra, a pandemia conduziu as famílias a uma maior consciência sobre este tema porque antes não tinham tempo para refletir. O mais curioso, aponta o realizador, é que depois do episódio com o DJ Van Breda, o documentário praticamente foi “relançado”.
“O que o mundo precisa neste momento é que façamos as coisas bem e que façamos coisas que regenerem o planeta e, portanto, não fazer mal não quer dizer que façamos bem e isso é importante de dizer”, esclarece o realizador. É preciso uma reflexão sobre as práticas de consumo e, por exemplo, não é só reciclar, se depois se continua a comprar com sacos de plástico ao invés de sacos de pano, aponta.
Uma das conclusões a que Metella chegou na dissertação de mestrado foi que a maioria dos respigadores conseguiam ter uma dieta mais equilibrada, no sentido em que consumiam produtos que não podiam pagar: “Eu nunca comprava legumes orgânicos, por exemplo” e então “comecei a comer mais legumes de melhor qualidade e também a consumir alguns alimentos que antes não conhecia”.
Além disso, explica Metella, “a dieta começou a ter mais variabilidade e mais qualidade também, com o paradoxo de não gastar nada e também ao estar a fazer um «favor» ao ambiente”. Do lixo para o prato, a comida é um bem de luxo que deveria ser de acesso a todos.
Em Portugal existem vários organismos que já despertaram para este problema. A cooperativa Fruta Feia – que está nomeada para o Prémio Europeu Life 2020 –, a Food for Life, a ReFood, a loja Maria Granel, o Banco do Tempo, a loja GoodAfter, o Zero Waste Lab e ainda a Too Good to Go são apenas alguns dos nomes onde a sustentabilidade e o combate ao desperdício estão na ordem do dia.
A grande questão do desperdício alimentar, como aponta Metella, não é só da responsabilidade das cadeias de supermercado, mas sim desde a linha de produção até à de consumo – famílias incluídas. Todos deveriam questionar o “modo de viver o mundo, o nosso modo de consumir, o modo de crescimento sem limites enquanto o mundo tem limite”, refere a italiana.