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Brincar na rua, espécie ameaçada pelas quatro paredes

É cada vez mais importante libertar a mente dos miúdos, ter “tempo sem tempo”. E isto também é um assunto sério para os adultos. O “Brincar de Rua” é uma associação sem fins lucrativos onde uma antiga aluna da NOVA FCSH, responsável pela comunicação, voltou a brincar. Literalmente.

“Puxa, entra no jogo, dá meia volta, põe a mão no chão e no coração”. Matilde salta tanto que quando vai para a segunda parte da canção, pisa a corda. Das três meninas, foi a que conseguiu ir mais longe na canção de saltar à corda. O dia está cinzento e o chão molhado, o anúncio do outono que estaria para chegar. Este sábado de setembro, em Rio de Mouro, freguesia de Sintra, está chuvoso, mas entre as 15 e as 16 horas o sol espreita e permite que as crianças possam vir brincar para a rua.

A Guardiã Isabel Aires está numa ponta da corda a movimentá-la em círculos. É a vez da Inês saltar e a ladainha da canção começa novamente “Puxa, entra no jogo…”. Isabel é professora de inglês e vive no bairro. Hoje teve que vir sozinha, a outra Guardiã, Célia Costa, teve que ficar com a filha adoentada. “Normalmente têm que estar dois guardiões, mas como choveu e só vieram a Inês, a Rita e a Matilde, isto quase que nem é uma sessão oficial”, afirma Isabel.

No projeto “Brincar de Rua”, a única regra é que nada pode ser digital. Saltar à corda, tentar apanhar quem corre mais depressa, desenhar o jogo da macaca no chão ou construir castelos a partir de folhas de jornal são brincadeiras que dão asas à imaginação das crianças e que o Brincar de Rua recomenda. Esta é uma associação sem fins lucrativos em que o principal objetivo é colocar novamente as crianças nas ruas, a brincar, semelhante ao que se via há poucas décadas. Este programa é possível graças aos Grupos Comunitários do Brincar (GCB), uma união de voluntários que se disponibilizam para cuidar e brincar com os miúdos.

Mas não sem antes receberem uma formação e passarem por uma seleção para garantir a idoneidade individual. Estes grupos reúnem no máximo 15 crianças, mas com a pandemia, a organização dos grupos acolhe agora oito crianças. Antes, a brincadeira durava duas horas, agora é apenas uma, num grupo que recebe o nome de “Tribo de Brincar”. E as crianças continuam a adorar: “Se colocamos a hipótese «portas-te mal e amanhã não vais ao Brincar de Rua», as minhas filhas choram. Ainda ontem a Inês começou a chorar a dizer que queria vir”, ri-se Isabel ao relembrar.

Daniela Santos, antiga aluna da NOVA FCSH e responsável pela comunicação, diz que o projeto tem parceiros locais e que vão “para onde as pessoas nos querem e onde há a vontade de levar o projeto para lá. Entramos com o apoio de uma entidade, normalmente o município”, indica. E a gestão das atividades fica, posteriormente, ao encargo dos municípios e dos parceiros. O “Brincar de Rua” já está presente em mais de 20 cidades do país, entre elas Leiria, Lisboa, Viseu, Coimbra, Santarém, Pombal, Torres Vedras, Covilhã, Guarda e Aveiro. Depois da pandemia, iniciou atividades em Braga e Sintra, em Rio de Mouro.

Isabel conta que teve conhecimento do projeto numa publicação das redes sociais e que achou muito interessante: “Ainda falei com o Francisco Lontro, mas depois ficou tudo em suspenso”, diz, porque os casos de COVID-19 começaram a aumentar na zona de Sintra e, entretanto, entrou o mês de agosto. “As atividades começaram no início deste mês, porque quando estávamos prontinhas para começar a zona de Sintra piorou e ficamos reduzidos a cinco pessoas e não dava”, mas “depois viemos com toda a força”.

A Guardião Isabel Aires com as três crianças a saltar à corda. Créditos: Ana Sofia Paiva

No “Brincar de Rua” há espaço para todos e há três grupos essenciais no projeto. Os brincadores, que é como quem diz as crianças, são aceites entre os quatro e os 12 anos, sendo estas idades variáveis consoante cada criança; os guardiões, voluntários que se juntam aos Grupos Comunitários do Brincar (GCB) e certificam a segurança e a diversão dos brincadores; e os Embaixadores, que “vestem a camisola” pelo projeto e que organizam os GCB. No total, somam-se 200 guardiões e a participação ao longo destes anos já ascendeu às três mil crianças.

Todas as semanas, à mesma hora, as crianças vão brincar para os locais do GCB. Mas há outras atividades que a associação promove: o PlayDay, que é uma atividade de brincadeira extra, o PlayTalk, eventos informativos para os pais, o PlayLab, tutorial ou workshops para os brincadores, e os Encontros do Brincar, atividades mais pequenas que o PlayDay.

A associação sem fins lucrativos foi uma das entidades distinguida recentemente com o galardão da UEFA Foundation for Children, o que valeu ao projeto uma bolsa de financiamento no valor de 50 mil euros. Francisco Lontro, fundador da associação e licenciado em Educação Especial e Reabilitação, com especialização em Psicomotricidade na área da Saúde Mental da Infância e Adolescência, afirma que este valor vai ser essencial para a expansão do projeto: “Tomamos a decisão que o programa se ia abrir a nível nacional, portanto ele estava a funcionar na zona Centro e em Lisboa, e agora vamos expandir para todo o lado”.

As três crianças continuam a brincar apesar da ameaça de chuva. Créditos: Ana Sofia Paiva

Consciencializar os pais de que a brincadeira é importante para as crianças é a principal missão do “Brincar de Rua”, agudizada ainda mais neste momento em que as crianças estiveram presas em quatro paredes. “O que os pais e os guardiões nos dizem é quase uma euforia dos miúdos em se voltarem a encontrar, de voltar a ter esta oportunidade de brincar com outros miúdos num sítio agradável, portanto há esse lado mágico” aponta Francisco Lontro, “podemos ter algum conforto de normalidade”. Estas reações reforçam ainda mais a necessidade das brincadeiras na rua.

“A rua é um bem em vias de extinção”

Uma equipa de cinco pessoas tem levado a brincadeira para a rua porque decidiu dar asas à imaginação. “Começámos a analisar o panorama de brincar e vimos que as crianças estão mais voltadas para o interior, para os ecrãs, estão mais obesas e as notas escolares também refletem a falta de tempo para brincar”, aponta Francisco Lontro. A ideia nasceu no seio de um grupo de profissionais da área da saúde que decidiram associaram-se à Ludotempo, associação da promoção do Brincar, sem fins lucrativos, “para pensar que o brincar é biologicamente essencial”.

O “Brincar de Rua” nasceu em 2015. Três anos antes, acontecia pela primeira vez no país o I Seminário de Brincar, evento que Francisco foi cofundador: “Foi em 2012 e aconteceu da vontade de valorizar e de começar a mostrar que há pessoas a fazer coisas [lá fora]”.

A reflexão do Seminário incidiu sobre a importância de as crianças terem tempo, um tempo só delas para explorar, não pensar em mais nada e divertirem-se, à semelhança do que outros países já estavam a implementar. “É o nosso objetivo, darmos voz e valorizarmos esses projetos, muitos deles feitos por carolice”, afirma Francisco.

Mas porque é que brincar é tão importante para que tenha dado origem a uma associação para este fim? Nos dias que correm, os pais preenchem o tempo das crianças com atividades extracurriculares, o que não é necessariamente negativo. O problema é que negligenciam o “tempo sem tempo” dos miúdos. “Temos que começar a pensar ao contrário, as crianças precisam de menos coisas para se descobrirem a si próprios, para serem autónomos e tomar as suas próprias decisões, fazerem as suas próprias escolhas”, explica Francisco.

Francisco Lontro, fundador do projeto, numa atividade do “Brincar de Rua”. Créditos: Brincar de Rua

É na brincadeira, ao ar livre, que as crianças estão focadas em determinadas atividades, fruto da sua própria escolha e acompanhadas pelos amigos. No espaço do “tempo sem tempo” surge a criatividade, “que não se aprende”. Imaginar, magicar e criar é “um passo lindo, a criança olhar para dentro de si e ver a sua imaginação e transformá-la em algo que existe, ver a luz do dia!”, exemplifica o fundador da associação.

O ser humano é moldado por rotinas e se se der a uma criança a passividade dos ecrãs, dos vídeos em reprodução automática no Youtube, essa é a realidade que vão conhecer e adquirir. Mas se desde pequenos praticarem desporto por gosto, brincarem em grupo na rua ou nos parques infantis, estes futuros adultos vão tornar-se mais ativos, criativos e reduzir as estatísticas de obesidade e passividade.

Estas são as vantagens de brincar, sem impor nada às crianças. O problema é que “a rua é um bem em vias de extinção” aponta Francisco, porque “as pessoas usufruem cada vez menos dos espaços e vão para centros comercias”. Se a cidade é utilizada para ir do lugar A para o lugar B, ou seja, de casa para o trabalho, por exemplo, pelo caminho não há a perceção de cantinhos para as crianças. “É preciso olhar com mais atenção” adverte Francisco, porque há de facto espaços para os miúdos correrem e libertarem-se do quotidiano. A Tribo de Sintra é um dos exemplos.

Bruno Silva é pai de Matilde. Enquanto a filha corre, salta à corda e convive com as outras crianças, explica que “quando era pequeno estava sempre a brincar na rua e quero passar esses valores [à minha filha]”. Na altura do confinamento “tentávamos vir à rua, aqui é uma zona mais familiar, mas ela gosta muito de vir”, afirma o pai.

O “Brincar de Rua” não junta só as crianças para brincar, mas também promove o convívio entre os pais. Isabel é vizinha e professora de inglês de Matilde, mas só quando o “Brincar de Rua” começou é que a relação entre vizinhos se tornou mais forte: “É uma coisa gira porque apesar de já nos conhecermos, não nos dávamos por ali além” até porque “somos vizinhos aqui, há 15 anos, e apesar da casa deles [dos pais de Matilde] dar para a nossa, nunca nos tínhamos cruzado e as miúdas até têm pouca diferença de idade e portante estão aqui encantadas umas com as outras”, conta Isabel com um sorriso.

O contágio da brincadeira

Daniela tornou-se mestre pela NOVA FCSH em Ciências da Comunicação – Estudo dos Media e Jornalismo. Trabalhou durante um ano numa agência em Lisboa e decidiu voltar às suas origens, em Leiria. Surgiu a oportunidade de integrar este projeto embrionário, candidatou-se e ficou. Durante um ano foi a única responsável pela comunicação do projeto, hoje supervisiona uma estagiária na sua área.

Trabalhar pode ser sinónimo de rigidez, mas neste projeto isso não existe. Claro, há objetivos a cumprir e decisões a tomar, mas voltar a “brincar”, depois de tantos anos, foi uma aventura para Daniela: “Antes de ir para este trabalho nunca tinha pensado que esfolar os joelhos tinha contribuído para a minha vida adulta e agora vejo isso. Os conflitos com os meus colegas, o ser responsável e ser autónoma na brincadeira”, recorda.

Daniela relembra as brincadeiras de criança, como jogar às escondidas, jogar à bola, ao eixo, saltar à corda ou saltar nos quadrados desenhados no chão do jogo da macaca. À altura, não percebia o quão positivo estas atividades estavam a marcar a sua vida. “Quando vês estas crianças a brincar, vês que elas estão a construir o seu futuro”, reflete.

Em Rio de Mouro, há muitas escolas em redor da Tribo e para Isabel é uma pena não se verem crianças na rua, mas tem consciência dos receios que existem por parte dos pais. Com o projeto, sábado é sinónimo de ver brincadeira na relva, gritos de alegria, cantorias e animação. Uma das alunas de Isabel ouviu-a a falar com Matilde e ficou interessada em brincar. Isabel disse-lhe para falar com os pais para se inscrever e “enquanto não convenceu [o pai] a inscrevê-la, não descansou. E agora é umas das mais entusiastas”, conta Isabel.

Atividades com caixas antes da pandemia. Créditos: Brincar de Rua

“A rua é o local mais seguro onde nós podemos ter os miúdos neste momento”, explica Francisco, porque “ao ar livre o risco de contágio é infinitamente menor do que num ambiente fechado”. Contudo, o profissional explica que as normas da Direção-Geral de Saúde (DGS) são cumpridas, mas que é preciso ter cada vez mais consciência da importância das crianças brincarem umas com as outras na rua, até em termos mentais.

“Temos crianças, muitas delas, há seis meses focadas em coisas que não são de criança. Porque ter aulas com outros miúdos através do ecrã não é coisa de criança, não explana a necessidade de uma criança aprender a ler o outro”, explica Francisco, “e isso deixa marcas numa criança”.

Apesar de as atividades estarem mais condicionadas, o “Brincar de Rua” não deixou de ajudar os pais durante os meses de confinamento: sugeriu um conjunto de atividades que as crianças podiam fazer em casa ou nas “saídas higiénicas” e, ao mesmo tempo, fortaleceu a formação dos Guardiões para as atividades futuras.

O esforço, no final, é apenas este: alinhar na brincadeira.

Ana Sofia Paiva

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