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João Kopke, o “mais inútil de todos os canivetes suíços”

O mar é a sua segunda casa e a prancha a extensão do corpo. João Kopke tem 24 anos e uma mão cheia de estórias e documentários. O espírito inquieto em explorar o mundo não o deixa sossegado e, pelo caminho, está a terminar a licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais (CPRI) na NOVA FCSH.

O sorriso é um acessório que não dispensa e contrasta com a pele marcada pelo sol. Quem olha para o jovem de 24 anos não descortina a multiplicidade de saberes que congrega no espírito: é surfista, músico, cantor lírico, storymaker e aventureiro. Na bagagem já acumula experiências em cerca de 30 países, em competições, concertos e documentários.

Não consegue explicar o porquê desta ânsia de explorar e de estar em movimento, mas prefere “experimentar mais coisas e sentir mais coisas, mesmo que nem todas essas coisas sejam agradáveis, do que experimentar pouco e estar mais estável e numa zona de conforto”. É do conhecimento comum que o saber não ocupa lugar e para João Kopke este dito popular não podia ser mais adequado.

Talvez fosse por essa razão que decidiu enveredar para o curso de CPRI na NOVA FCSH. O surfista confessa que sempre gostou de História e de Biologia e foi a nota da primeira que o permitiu entrar na faculdade. Escolheu esta licenciatura porque sabia que “tinha bastante História no curso e o que eu queria mesmo – e isto foi consciente –, era continuar a aprender talvez de uma forma mais académica, longe das duas coisas que eu fazia que era o surf e a música”, conta.

O surfista não esconde a obsessão saudável que coloca àquilo no qual se entrega, principalmente quando há unidades disciplinares que o desafiam, afirma: “Estou a fazer um projeto para uma cadeira de filosofia que fui desencantar aos confins do mundo e estou a adorar!”, contudo “acabo por meter mais tempo daquilo do que deveria”.

 

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus

 

“Reza a lenda que eu era um miúdo muito irrequieto”, ri-se ao contar João, e foi por isso que, no verão em que tinha oito anos, a mãe, Lilian Kopke, o colocou numa escola de surf e adorou. “Naquela altura, era brutal! Não havia nada do que há hoje, as escolas de surf eram uma cave, num buraco, no meio da praia, o professor era o nadador salvador, mas era brutal! Nós íamos mudar a bandeira e tudo”. Mas o problema foi que o inverno deu lugar ao verão e João não estava com muita vontade de ir para a praia. Ao mesmo tempo, fazia ginástica acrobática e era bom atleta, mas a mãe percebeu que o filho gostou daquele verão de ondas e areia.

“O primeiro instinto não era ir para a praia de inverno a chover e a minha mãe dizia «se não fores não podes ir para a casa do Filipe jogar playstation» e eu ia e adorava”, conta entre risos. Lilian esteve muito presente na educação extracurricular dos dois filhos. João é o mais velho e durante a infância experimentou futebol, capoeira, judo e ginástica acrobática.

Com a ajuda da mãe, percebeu que apanhar ondas era o “tal” desporto: “[Ela] acabou por me encaminhar para uma coisa que é o surf, que hoje em dia me preenche como mais nada na vida e isso foi a puxões de orelhas. E isso é uma coisa que eu gosto de contar porque é um bocadinho contra a corrente [nos dias de hoje]”. Tal facto verificou-se: João foi campeão em todos os escalões de júnior (sub-14, sub-16 e sub-18), vice-campeão europeu, no campeonato Grom Search (sub-16), e ainda esteve no top cinco do campeonato nacional open.

João integra a equipa da NOVA Desporto de Surf que, em 2019, conquistou o primeiro lugar na classificação coletiva no CNU Surf. Na competição individual, o surfista conquistou o ouro. A música e o canto lírico surgem noutra dimensão da sua vida, que já lhe valeu concertos a convite da NOVA Desporto, durante o Estado de Emergência. 

 

Os documentários, apanhar ondas na Torre de Belém e tocar o contrabaixo do Rei D. Carlos

Na casa dos pais, a música sempre esteve presente, não fosse a mãe diretora da Escola Artística de Música do Conservatório Nacional (EAMCM), em Lisboa, e o pai músico não profissional. Mas Lilian Kopke nunca forçou os filhos a seguir este caminho, mas Maria, a filha mais nova, começou a tocar violoncelo ainda em pequena e o som do instrumento despertou curiosidade de João. Mas tinha um “senão”: “[Eu] era o irmão mais velho e então tinha de tocar um instrumento maior do que o dela”, ri-se.

Maior que o violoncelo, só mesmo o contrabaixo, e assim foi: “Não me arrependo, porque adoro o meu instrumento, mas por outro lado não dá para levá-lo para lado nenhum”, confessa. E desta decisão, entrou aos 10 anos para o Conservatório, onde esteve durante 13 anos e não hesitou em tocar um contrabaixo secular.

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração

Numa das salas do Conservatório Nacional está um contrabaixo do século XIX, que se acredita ser anterior ao Rei D. Carlos, batizado com o nome Thibouville-Lamy. É especial por várias razões, entre elas, por se considerar que pode ter alguma relação com o contrabaixista Giovanni Bottesini. João foi dos poucos que teve a oportunidade de dedilhá-lo.

Mas ainda mais atrevido, é a relação que quer estabelecer entre o surf e a música, que ainda não sabe como, mas que é um desejo. “É uma ligação menos óbvia”, mas que está a trabalhar para encontrar a solução. Originalidade não falta ao surfista, já que, em 2017, se lembrou de apanhar umas ondas na Torre de Belém.

A música está presente na vida de João desde muito cedo

Mas a criatividade e o espírito do surfista não o deixam ficar parado. João Kopke está numa missão de “desconstruir” o surfista típico. Ele próprio diz que “não me vejo minimamente com o vício do desportista”, até porque “farto-me de conversas sobre desporto, não tenho muita paciência”, aponta.

Não critica os outros desportistas, mas João sabe que há mais para além do típico surfista. Por isso, decidiu apostar nessa ideia e criou uma série de documentários sobre a Liga MEO Surf, com o nome “Desfiltrado”. O surfista apresenta a todos o que se passa nos bastidores da competição, sempre com humor à mistura.

Na onda de dar a conhecer as estórias, as pessoas e as maravilhas de cada país para onde viajava, João acabou por perceber o prazer de comunicar e de fazer documentários. Em 2019, produziu o “El Sombrero”, uma curta-metragem de quatro minutos onde o surfista vai apanhar as ondas famosas do México.

O storymaker afirma que “gostava de aliar viajar com o surfar, mas também com o estar constantemente a aprender coisas novas e que isso fosse um produto do meu trabalho, podendo fazer documentários e tudo mais”. Até porque, atrás das câmaras, há trabalho a ser feito: “Tens que te informar sobre as coisas que vais visitar, então acaba por ser uma maneira de estar constantemente a aprender, como modelo de negócio”.

Surgiu, então, a série “Riding Portugal”, apoiada pela TAP, que já vai na segunda temporada. De norte a Sul do país, e navegando até às ilhas, o storymaker conta estórias que vão desde a gastronomia até aos locais mais inusitados, com as ondas e a prancha sempre à mistura.

Um programa que gostava de “colocá-lo numa televisão, mais aberto, maior e que tivesse mais visibilidade junto do grande público”, contudo “o feedback tem sido muito além do que esperava, às vezes as pessoas vêm me dar os parabéns e fico todo atrapalhado (…) e depois também me mandam muitas mensagens pelas redes sociais”, conta.

Até porque João considera que “não sou só água e só prancha, de todo”, aponta. Porém, o trabalho também lhe exige o dom da palavra e o esforço para provar que merece o apoio de determinado patrocinador, afirma: “Eu tenho de convencer porque é que um surfista vai falar de História, quem é que é este tipo que vai falar sobre isto? E constantemente eu tenho de convencer diretores de marketing, donos de empresas, de que este trabalho é útil para quem o vê e que as pessoas gostam”.

Voltar a sentir a areia nos pés

Há dois países que estão intimamente ligados ao surfista: Brasil e Portugal. Os pais de João são brasileiros, mas o jovem nasceu no país. A areia nos pés são um dos ingredientes que o fazem feliz, seja no outro lado do oceano ou no país à beira mar.

Com a pandemia, todas as modalidades desportivas foram suspensas e, quando João pôde regressar, “foi incrível, e ainda por cima foi em casa, em Carcavelos. Então aquele gostinho, estou na minha praia, a praia do meu coração”, conta com um sorriso e acrescenta “a areia foi uma coisa brutal de sentir debaixo dos pés e surfei péssimo, correu tudo mal, mas não era isso que interessava”, ri-se. O regresso ficou gravado em vídeo, que partilhou na rede social Instagram.

O confinamento tornou alguns projetos de João numa incógnita, que compreende dado o abrandamento da Economia. Confessa que é um privilegiado e que não sofreu tanto, em termos de ansiedade, com o Estado de Emergência. Fez outras coisas: estabeleceu contactos, leu, fez voluntariado e ainda participou na série “Saber Mais”, da Fundação Calouste Gulbenkian, uma iniciativa agregada ao “Estudo em Casa”, da RTP Memória. Entre outras personalidades, juntaram-se Catarina Furtado, Tiago Brandão Rodrigues e Carlos Moedas.

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar

A música de Gilberto Gil, “Se eu quisesse falar com Deus”, é o tema escolhido por João para ilustrar os tempos estranhos da pandemia. E o progressivo desconfinamento permite ao surfista seguir com outro projeto: “Agora vou gravar um documentário num sítio onde gravei há dois anos e vai ser completamente diferente, as pessoas vão ser diferentes. Ou seja, é mais do mesmo, mas de uma maneira diferente”, conta. Apesar de o surf ser a sua paixão, João diz que “gosto de competir, mas não quero que a competição seja o meu caminho principal”. E é aqui que entram os documentários e a descoberta do mundo.

João Kopke podia ser um canivete suíço: está quase a terminar o curso de CPRI na NOVA FCSH, toca contrabaixo e é cantor lírico, o surf é a sua musa, os documentários têm tido resultados positivos. Mas, quando é confrontado com tantos afazeres e interesses, João responde com uma gargalhada: “Sou o mais inútil de todos os canivetes suíços”.

Ana Sofia Paiva

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