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A Metro se constrói uma cidade

São seis décadas desde que as primeiras onze estações do Metropolitano de Lisboa foram inauguradas. Desde então, muitos insólitos já passaram pela estação das obras, marcos importantes saíram na estação da história da cidade e a próxima estação é a expansão da rede para outras zonas de Lisboa.

Uma gaivota, um girassol, uma caravela e o Oriente. São-lhe familiares estes símbolos? Apesar de passarem despercebidos, representam as quatro linhas do Metropolitano: a linha azul, a linha amarela, a linha verde e a linha vermelha, respetivamente. A 29 de dezembro de 1959 eram inauguradas as primeiras onze estações de Metro na capital, mas até as carruagens serpentearem no subsolo, muito trabalho, muita terra, achados arqueólogos e polémicas se desenterram na capital.

“Lisboa estava num cangalho”, ri-se Delfina Mendes a relembrar a época em que trabalhava na Baixa-Chiado e as obras do Metro estavam na ordem do dia. “Havia mais trânsito do que agora, e na baixa então não nos podíamos mexer” exclama, hoje com 81 anos e com os tenros 21 na lembrança. Desde sempre viveu na cidade; casou, teve duas filhas e uma neta e hoje recorda os tempos de antes, quando Lisboa tinha outro rosto. Todos os dias ia para o trabalho sentada em quatro rodas, o que piorava ainda mais o condicionamento das estradas, mas a alternativa havia de chegar, com cem anos de atraso.

Em 1885, um projeto para o subsolo de Lisboa tinha sido pensado no reinado de D. Luís, um traçado que ligasse Santa Apolónia a Algés. Henrique de Lima e Cunha ficou conhecido por ser o primeiro engenheiro militar a apresentar a proposta, a qual intitulou “Esboço de Traçado de um Caminho de Ferro Metropolitano de Lisboa”. Mas a ideia não avançou, ao contrário da rede de Metropolitano então inaugurada em Londres, em 1863, e até 1900 noutras cidades como Glasgow, Budapeste, Nova Iorque e Paris.

Até ao início das obras na capital, muitas foram as transformações a que Lisboa assistiu: o êxodo rural na viragem do século XIX para o século XX, a Primeira Guerra Mundial e ainda três regimes – o fim da Monarquia, a I República e o Estado Novo. “É muito visível esta densificação da malha urbana, sobretudo porque as pessoas acorrem à cidade, uma cidade que não está minimamente infraestruturada para acolher estas pessoas”, aponta Maria Fernanda Rollo, investigadora no Instituto de História Contemporânea da NOVA FCSH e autora do livro “Um metro e uma cidade” (1999, ed. Metropolitano de Lisboa, E.P.). Mas a construção ia ficar adiada mais um par de décadas.

Já com os elétricos da Carris a circular pelas principais artérias da cidade, o século XX mostrou-se mais otimista para receber as serpentes do subsolo. Havia interesses internacionais para investir na questão dos transportes públicos e a sensibilidade da Câmara Municipal de Lisboa (CML) para melhorar a qualidade dos alfacinhas. Em 1924, a edilidade abriu o concurso para a concessão e exploração do Metropolitano. Marco que esteve quase para não acontecer: “A inconsequência de muitos projetos que não se esgotam no metropolitano, projetos esses ambiciosos que se lançaram no país foram sendo sucessivamente adiados. Como é o caso da siderurgia nacional”, compara Maria Fernanda Rollo, porque “ficou um século adiada, ou seja, ainda fica para mais tarde do que a criação do metropolitano de Lisboa”.

Apenas 24 anos depois da abertura do concurso pela CML, foi formada a Sociedade do Metropolitano de Lisboa, SRL, que teve como primeiro presidente o engenheiro José do Nascimento Ferreira Dias Júnior, uma figura “muito importante para o avanço do metropolitano”, aponta a investigadora. Mas obstáculos não havia de faltar, entre eles a Carris e a espionagem industrial.

 

A nova cara de Lisboa, os insólitos e a espionagem

Delfina apanhava o autocarro todos os dias para ir trabalhar na Baixa. Quando ouviu falar do novo meio de transporte, recorda que “não sabia muito bem o que era”, mas que “acabou por ser um transporte muito bom, não tinha ideia que ia ser assim”, ri-se.

Apesar de o metropolitano se atrasar a chegar à estação de Lisboa, a preocupação foi a de “melhorar a eficiência urbana e ao mesmo tempo a qualidade de vida” dos lisboetas, afirma João Seixas, geógrafo e investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA) da NOVA FCSH, que aponta que “a geografia de Lisboa é muito particular. É uma das metrópoles mais fragmentadas da Europa” e por isso “o metro é um dos marcos mais importantes da segunda fase da era industrial das cidades”.

Mas antes, a Carris, que já tinha a circular os elétricos e uma rede de autocarros, inaugurada em 1944, acabou por criar obstáculos ao início das construções no subsolo. A empresa esteve quase para entrar na sociedade do metropolitano, mas isso “nunca aconteceu” porque “há um cenário de conflito e de espionagem autêntica entre a Carris e a construção do metropolitano”, evidencia Maria Fernanda Rollo. Isto porque, em certos pontos, a linha do Metro ia passar por baixo da linha do elétrico.

Apesar de todos os obstáculos, as obras do metropolitano avançaram a 1 de agosto de 1955 e colocaram as entranhas da cidade à vista. A polémica estava instalada nos principais sítios da cidade, do Marquês de Pombal, a Sete Rios, Restauradores a Entrecampos.

 

Cá no meu plano

Não havia podem crer

Este metropolitano

Que a Avenida vai conter

 

Isto é de agora

No meu tempo e para andar

Tinha Riper, tinha o Chora

O americano e o Salazar

Este dos quatro foi talvez o mais veloz

Mas já não anda, faz-nos andar a nós

 

Diz a Avenida

Rasgada, comprida

Qual estrada florida

Um hino à claridade

 

No fim de tudo

Cavaram, furaram

Para abrir um canudo

E foi-se a Liberdade

 

Os versos da música “Rosa Araújo” (1956), interpretada por João Villaret e proibida pela censura, encanta pela melodia e recita a opinião dos lisboetas, em particular, e dos portugueses, em geral. As polémicas geradas pelas obras do Metro tornaram-no uma causa nacional. As obras esburacaram a Avenida da Liberdade e colocou em risco as estátuas de Alexandre Herculano e o monumento em homenagem aos Soldados Mortos da Primeira Guerra Mundial.

Encontraram-se soluções sem retirar o monumento do sítio, mas as palmeiras que estavam na avenida causaram um rebuliço nunca antes visto: a imprensa, que acompanhava fervorosamente a evolução das obras, relatava que os cidadãos não queriam que as árvores fossem cortadas. Mas as palmeiras arrancadas, para tristeza da população, marcaram o início das obras na avenida. Mas os insólitos não se findaram por aqui.

A passagem da Rainha D. Isabel II de Inglaterra por Portugal, em fevereiro de 1957, foi uma prova de fogo aos calceteiros da obra, refere Maria Fernanda Rollo: “Há uma intensidade enorme de pavimentação da avenida e lá passa a Rainha no coche. Mas antes de ela passar, estavam dezenas de calceteiros e eles conseguiram concluir o pavimento até passar a Rainha. São imagens incríveis”.

As construções a céu aberto e os enormes buracos no solo da cidade suscitaram a curiosidade dos transeuntes, que paravam para tentar subir aos tapumes de proteção. O Metropolitano, ao saber, decidiu colocar umas janelas nos tapumes, para que os mais curiosos pudessem ver o que estava a acontecer na face mais desconhecida da cidade. “As pessoas ficavam doidas com aquilo que os operários estavam a fazer, com as máquinas gigantes, com o cenário de construir o metropolitano que ninguém sabia o que era, o deslumbre era total”, enfatiza Maria Fernanda Rollo.

 

Esta ligação da empresa com a cidade foi um sinal de modernismo, afirma a historiadora porque, se atualmente é habitual esta relação entre a cidade e o que está acontecer nela, à época era fora do normal. O Metropolitano decidiu então distribuir panfletos com o nome Manual dos Mirones para que os indivíduos soubessem utilizar o futuro meio de transporte. Mais tarde, substituiu-o pelo Manual do Passageiro, para elucidar as normas de utilização do metro.

 Artur Agostinho, apresentador português, é o primeiro a entrar na estação de Metro para realizar um filme, em novembro de 1959, para apresentar o tão aguardado Metropolitano de Lisboa. Encomendado pela empresa à produtora Tobis, o filme foi exibido nos principais cinemas da cidade.

 

 

Foi então que chegou o tão aguardado dia, 29 de dezembro de 1959. Com dois anos de atraso, o Metropolitano foi inaugurado com pompa e circunstância pelo Almirante Américo Tomás, Presidente da República, França Borges, presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), o cardeal Cerejeira, e D. Francisco de Mello e Castro, o presidente do Conselho da Administração do Metropolitano, SARL à época.

A população ficou tão entusiasmada que na madrugada a seguir à inauguração, a 30 de dezembro, já existiam filas para entrar. Os lisboetas aderiram em massa e horas depois da abertura, o metro teve de deixar de vender bilhetes. O jornal República noticiava este feito e referia que as escadas rolantes da estação do Parque eram outra das atrações. Chegaram a existir excursões: “As pessoas vinham de propósito a Lisboa para verem as escadas rolantes e as luzes néon que não existiam antes e o próprio metro”, aponta a historiadora, “há muitos relatos deste fascínio técnico”.

Depois de muitos anos a trabalhar na baixa, Delfina muda de emprego e deixa de apanhar o autocarro: o metro servia para ir para o consultório onde trabalhava, na Avenida António Augusto Aguiar. “Onde trabalhava era mesmo à porta do metro, uma maravilha”, recorda. E as escadas rolantes? “Eu cá com as escadas rolantes só me habituei graças ao meu marido, que de outra forma não conseguia”, dá uma gargalhada ao relembrar essa época. Com a abertura do Metro, Lisboa era ela própria uma excursão, porque “onde ele ia, nós também íamos”, aponta Delfina.

 

De “Português Suave” a “Palácios do Povo”: a evolução do Metro

 A pouco e pouco, o Metro começou a fazer parte da vida dos lisboetas e de quem visitava a cidade. Apesar de algumas polémicas centradas no preço dos bilhetes e de greves dos funcionários por um melhor salário, o “avançar do Metro foi relativamente aos soluços”, aponta João Seixas. Isto porque o alargamento da rede do Metropolitano teve momentos demorados na sua construção: em 1960, por exemplo, começaram as obras para as estações do Rossio até Alvalade, pautadas por alguns momentos de interrupção – os achados arqueológicos na Praça da Figueira, a falta de financiamento noutras zonas, entre outros aspetos.

“Há um período em que cinco novas estações são inauguradas e depois durante 10 ou 15 anos não acontece nada”, refere o geógrafo da NOVA FCSH, “é uma construção demasiado em soluços, demasiado voluntarista, de determinadas pessoas ou determinadas equipas, que é um pouco o reflexo do timbre da evolução do pensamento e do urbanismo em Portugal”, explica.

É preciso pensar na mobilidade dos territórios da cidade, explica João Seixas, porque a evolução de Lisboa nestes termos é uma metáfora da guitarra de Carlos Paredes: é arrítmica. É necessário pensar, antes de mais, no direito das pessoas à cidade através da mobilidade que o metropolitano permite.

Na crónica “O valor do Metro” (2012) publicada no jornal Público, o geógrafo escreve que “é a forma como estruturamos a nossa mobilidade que vai definir as diferentes funções da cidade”. O planeamento é importante e o acesso da população da periferia e vice-versa aos vários “cantos” da metrópole também. Daí que seja preciso pensar em termos rádio concêntricos, ou seja, numa rede de metro circular ou em malha, que permita uma pessoa, por exemplo, estar em Odivelas e ir até à Amadora sem ter que trocar tantas vezes de linha.

“Se há uma possibilidade de chegar rapidamente até ao local da escola dos filhos ou do trabalho, é uma forma eficaz, barata e eficiente que o metro permite e não há problema de viver a dez quilómetros da cidade”, logo “isto torna a cidade muito mais eficiente e em certos aspetos mais ecológica e sustentável”, explica João Seixas.

É com a construção da linha do Oriente, mais conhecida por linha vermelha, a primeira linha independente desde a inauguração de 1959, que se começa a pensar desta forma, indica o geógrafo. Com uma metrópole de cerca de dois milhões de habitantes, esta democratização do território que o geografo se refere começou a ser pensada, com o alargamento da rede até à Amadora Este, a Odivelas e até ao Aeroporto. “Temos que pensar urbano” porque “temos de valorizar as nossas cidades” e “pensar na linha do Metropolitano como aumento da qualidade de vida”.

Com o passar do tempo, o metro conseguiu feitos históricos: a construção de raiz da linha vermelha, a abertura de mais novas estações, o feito de fazer a curva entre a estação de Alvalade e o Campo Grande, bem como a cruz na estação da Baixa Chiado, “uma homenagem à engenharia”, como Maria Fernanda Rollo a batiza, e o desmembramento do Y no Marquês de Pombal.

Mas e a imagem das estações do metro? Essas eram minimalistas, em 1959. Eram estações “Português Suave, um reflexo muito claro do Estado Novo” em tons de cinzento e branco, sem nenhum adorno, refere o geógrafo. Poucos anos depois, a artista Maria Keil tornou-se a responsável pela decoração da maioria das estações e com o avançar das décadas – e com Lisboa Capital da Cultura em 1994 – começa-se a olhar para as paredes subterrâneas com outro olhar, decisão incentivada pelo engenheiro Consiglieri Pedroso, à época diretor da empresa do Metro.

A maior parte das estações foram intervencionadas com pinturas e trabalhos plásticos de, entre outros, Júlio Pomar (na estação do Alto dos Moinhos), Sá Nogueira (na estação das Laranjeiras), Manuel Cargaleiro (Colégio Militar/Luz), Martins Correia (estação de Picoas) e na estação do Campo Pequeno a intervenção do escultor Francisco Simões. A estação de Olaias, eleita em 2013 pelo Huffington Post como uma das 20 estações mais “cool” do Mundo, refere o website Dinheiro Vivo, foi desenhada pelo arquiteto Tomás Taveira e intervencionada pelos artistas plásticos Pedro Cabrita Reis e Rui Sanchez.

Estes, entre outros, “são investimentos públicos para que a sociedade se sinta identificada e tenha uma noção de comunidade que hoje me dia precisa”, explica João Seixas. São, o que o escritor Eric Klinenberg designa por “Palácios para o Povo” (Palace’s for the People (2018), em inglês) e que, na opinião do geógrafo, é importante existirem porque numa altura “de redes sociais, é importante este sentido de comunidade e as estações do Metropolitano de Lisboa são-nos muito o sentido de comunidade, são palácios para o povo”. É quase como se existisse uma outra cidade por debaixo de terra.

E apesar desta cidade subterrânea ainda não chegar a todos os cantos da metrópole, numa razão radial ou concêntrica, o geógrafo acrescenta que “é uma metáfora belíssima de Portugal, em que temos uma parte muito importante do povo ainda sem a qualidade de vida que merece, mas ao mesmo tempo temos uma cultura, os palácios para o povo e um património extraordinário”.

 

Avenida dos EUA, em Lisboa, desenhada por António Jorge Gonçalves

 

Estação terminal: o alargamento da rede nos próximos anos

Seis décadas de Metropolitano a circular pela cidade. Demorou a chegar à capital portuguesa, mas hoje em dia é impossível imaginar um dia sem este meio de transporte, embora por vezes caótico. “O Metropolitano tem ao longo da sua história, não na mais recente, mas ao longo da sua vivência momentos de modernidade, de inovação, de competência tecnológicas muito grandes”, explica Maria Fernanda Rollo, que aponta a engenharia do Metropolitano como totalmente portuguesa.

O futuro ninguém o sabe, mas existem palpites. O ano de 2019 não só marca os 60 anos da inauguração da primeira linha de Metro, como a redução dos passes sociais dentro da cidade e na metrópole. As mudanças começam a sentir-se: “O dia 1 de abril ficará para a história e não é só da metrópole, é do país, porque foi em Lisboa, no Porto, numa série de terminais do Algarve e em Coimbra, e esta redução vai ficar para a história do território do país, tenho a certeza”, afirma João Seixas.

Este feito histórico é um dos passos para a melhoria do Metro. Não só agora este meio de transporte pensa e age de maneira mais sustentável e promove ações de sensibilização como “Lembre-se, o Metro é de todos” ou “Segurança Metro-a-Metro”, como o objetivo é de proporcionar aos utilizadores mais duas estações de metro nos próximos anos. Segundo o Diário de Notícias, prevê-se a abertura das estações de Santos e Estrela, que ligam o Cais do Sodré ao Rato, com o objetivo de tornar a rede mais circular.

“Precisamos de ter transportes públicos eficazes, o Metro de Lisboa é aquele que tem um potencial mais evidente” afirma a historiadora da NOVA FCSH, que vinca que é “absolutamente determinante que isso se cumpra, mas também é absolutamente vital que o Metro consiga reatar o compromisso com a qualidade, com a inovação e com a eficácia do seu funcionamento, que tem tido uma indisfarçável degradação ao longo dos anos”.

Delfina Mendes deixou a Mouraria e foi morar para o bairro dos Olivais, ainda antes de existir a linha vermelha. Hoje, com 81 anos, não pára durante o dia: vai às compras, ao supermercado, ao posto médico e passeia. “Ter os autocarros e o Metro perto de casa é tão bom! Vou para todo o lado. É uma maravilha”, sorri. O Metropolitano não é só um meio de transporte, é já uma identidade, faz parte da cidade e dos que nela habitam.

Ana Sofia Paiva

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