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Lições que se aprendem num albergue em Lisboa

Beatriz não deixou que a pandemia a assustasse e arregaçou as mangas para ajudar os outros. Ao mesmo tempo que era voluntária num albergue de pessoas sem-abrigo e toxicodependentes, a jovem conseguiu terminar a licenciatura na NOVA FCSH.

Na t-shirt preta em letras brancas lê-se “Habitação para tod@s, artigo 65”. Este é um dos itens da Constituição Portuguesa que invoca os direitos e deveres sociais à habitação e urbanismo. Beatriz Farelo defende este artigo e tem-no estampado na indumentária, em contraste com as calças castanho claro.

À flor da pele tem as convicções em que acredita e expressa-as através das suas ideologias e ativismo. Num dia de sol às 15 horas, a jovem de 20 anos prepara-se para começar mais um turno de voluntariado no Clube Nacional de Natação (CNN), um dos cinco centros de alojamento de emergência integrados na Rede Solidária da Câmara Municipal de Lisboa (CML).

O voluntariado começou no final de março quando o COVID-19 já era uma realidade no país. Beatriz queria fazer algo mais do que estar apenas em casa a terminar o último semestre da licenciatura de Ciência Política e Relações Internacionais (CPRI) da NOVA FCSH. Mas isso valeu-lhe as saudades da mãe e da avó, o esforço acrescido para terminar o curso e ainda desgaste emocional.

À entrada do pavilhão onde antes se jogava basquetebol há cadeiras, mesas e ainda uma mesa de matraquilhos. Sentados a fumar “um pensativo cigarro”, como diria Eça de Queirós, estão meia dúzia de homens a apanhar a fresca da sombra do toldo. Beatriz passa por eles e os rostos reconhecem-na. Cumprimentam-na com um “olha quem é ela, é a Beatriz!” e a resposta não se faz esperar “Então está tudo bem? Já aqui venho”.

O pavilhão é grande e nas paredes ecoa a cacofonia de um filme que está a passar na televisão. Depois de passar a porta, alguns dos homens estão tão atentos que nem dão conta do cumprimento da voluntária. Os que estão sentados já tinham passado pela triagem: é obrigatório ter um encontro com os Médicos do Mundo antes de entrarem no pavilhão. É medida a temperatura, analisada a toma dos medicamentos e percebido o estado do indivíduo. O recolher no pavilhão é das 16 horas até às 22 horas. De manhã, tomam banho e às 10 horas saem para a rua ou para os centros de atividades, para o espaço ser limpo e desinfetado.

O CNN é um albergue exclusivo para homens, com pouco mais de quatro dezenas a partilharem o mesmo espaço. Os dias passam e os cuidados mantêm-se: tomam dois banhos por dia, são lhes dadas cinco refeições e peças de roupa, fazem diferentes atividades, jogam matraquilhos quando lhes apetece; são dados kits para consumo protegido de drogas e a carrinha de metadona chega pela manhã.

O Clube Nacional de Natação (CNN) dá abrigo a pouco mais de quatro dezenas de homens. Créditos: Ana Sofia Paiva

“Foi difícil”, conta Beatriz “no final da segunda ou na terceira semana [de voluntariado], comecei a sentir-me cansada, mas não fisicamente, era mais emocional”. No início, os turnos de Beatriz eram de oito horas diárias, três vezes por semana. Tudo se começou a acumular: “Era uma realidade que eu sabia que existia, mas não conhecia a sério. Primeiro ia fazendo os turnos, mas só depois é que comecei a perceber que esta história me afetava de certa forma”, explica.

Dina Nunes, assessora de Manuel Grilo, vereador com o pelouro dos direitos sociais e habitação da CML, aponta que “desde o primeiro dia em que abrimos os centros, eles têm estado sempre cheios” e que quando Beatriz desabafou com ela “percebi que ela estava num momento complicado. Era uma exigência brutal, porque eram turnos de oito horas, são turnos em que elas sendo voluntárias fazem tanto como se fossem técnicas ou técnicos, [apesar de estarem] sob orientação” realça.

Beatriz não estava preparada para encarar a realidade de pessoas em situação de sem-abrigo, toxicodependentes ou com problemas mentais como a esquizofrenia. A dormir em casa de amigos para evitar o contacto com a família, a voluntária continuou a estudar e teve professores que compreenderam a sua situação e facilitaram-lhe a entrega de trabalhos: “Estou orgulhosa de mim porque fiz uma cadeira a mais, falhei uma quando estava em Erasmus, mas consegui fazê-la e terminar o curso!”, aponta com entusiasmo. Acrescenta que já se inscreveu no Mestrado de Migrações, Inter-Etnicidades e Transnacionalismo na NOVA FCSH.

O CNN, até ao momento, não registou nenhum infetado com o vírus, mas os problemas são de outra índole, também eles biológicos: pulgas, sarna, percevejos e baratas. Os objetos que os homens trazem para o albergue tem provocado a contaminação. “Não damos resposta organizada, não há forma eficiente de o fazer”, esclarece Dina Nunes, dado que não há maneira de prevenir a propagação dos animais. Têm acontecido algumas ações de desbaratização e de desinfeção, como aconteceu no CNN ou no Casal Vistoso, mas nem sempre é eficaz porque os indivíduos continuam a trazer os parasitas para o local.

Os utilizadores do espaço tomam banho duas vezes por dia. Créditos: Ana Sofia Paiva

 

Beatriz refere que nunca teve problemas e que não levou os “bichinhos” para casa. A bagagem que levava, essa sim, era psicológica: “No final de abril tive duas ou três consultas com a psicóloga da faculdade, ela foi fixe” mas “a Dina [Nunes] também me ajudou imenso. Houve um momento em que estava mesmo desmanchada e liguei-lhe e ela teve imenso tempo a falar comigo e a dar-me força e a explicar que era normal sentir-me assim”.

A jovem não podia desabafar com a família para não a preocupar, e não se sentia compreendida pelos amigos e percebeu “que estávamos em realidades diferentes”, afirma. Apenas o tempo a foi ajudando a lidar com a situação e a força psicológica de Dina Nunes ajudaram: “A Beatriz não é uma rapariga vaidosa nem egocêntrica e o que fazia, fazia-o por vontade, por gosto e por acreditar no que estava a fazer”. A assessora acrescenta ainda: “Se não tivéssemos pessoas como ela não conseguiríamos ter os centros”.

 

Porque os outros se mascaram mas tu não

Porque os outros usam a virtude

Para comprar o que não tem perdão.

Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados

Onde germina calada a podridão.

Porque os outros se calam mas tu não.

 

Porque os outros se compram e se vendem

E os seus gestos dão sempre dividendo.

Porque os outros são hábeis mas tu não.

 

Porque os outros vão à sombra dos abrigos

E tu vais de mãos dadas com os perigos.

Porque os outros calculam mas tu não.

 

A força, muitas vezes, vinha do poema de Sophia de Mello Breyner Anderson, “Porque os outros se mascaram mas tu não” e da música “Me Ilaman Calle”, dos Manu Chao.

Histórias com rosto

No fundo do pavilhão encontra-se o espaço de João, nome fictício, com a quinquilharia arrumada: livros, objetos que se encontram aqui e ali, uma planta, a cama feita e no canto uma viola sem cordas. “O espaço do João é brutal”, afirma Beatriz. “Ele uma vez descobriu daquelas luzes de espetáculos e montou-a aqui, foi muito giro”.

João está na casa dos 50 anos e vendia na Feira da Ladra. A falta de ofício não lhe tirou o entusiasmo de ir colecionando objetos para vender. Sentado à porta do pavilhão a falar com Mário, nome fictício, diz-lhe no sabor da conversa: “Eu não tenho vergonha de estar aqui. Um dia estamos bem e no outro estamos mal, é assim a vida”.

E como é que ali foi parar? “Eu vivia com a minha mãe, mas depois ela morreu. A renda subiu muito e eu não podia pagar 370 euros de renda” e, sem comentar esse facto, sustentar o vício da bebida. João está sóbrio quando conversa com Mário, um homem reformado, na casa dos 70 anos.

“Tenho a minha dignidade- Podem tirar-me tudo, mas eu tenho a minha dignidade. Estou aqui agora, mas vou sair”, afirma Mário com convicção. Não se alarga quando conta a sua história, apenas revela que estava no “Hotel D. Maria”, que é como quem diz o Hospital D. Maria, e não queria continuar internado. Algumas chamadas depois, encontrou abrigo no CNN. “O problema daqui de Lisboa é que isto está tudo para os turistas… despejam as pessoas para fazerem aqueles alojamentos. Isso não está certo e depois olhe, vimos para aqui”.

Nesta reflexão, vem o Pavilhão do Casal Vistoso à baila: “Os jornalistas foram para o Casal Vistoso porque ali é que há protagonismo. Até à naifada já lá andaram e ainda por cima por causa de um cobertor… de um cobertor, veja lá”, comenta João. Mário acrescenta: “Isto? Isto aqui? Não tem nada a ver! Claro que já houve algumas coisas… mas isto aqui? É o paraíso! Mas quero sair daqui, quero ter a minha casa”.

No CNN, à semelhança dos restantes centros, existem as assembleias onde se debatem as questões do próprio albergue. Dina Nunes impulsionou esta ideia “porque era uma oportunidade única em termos tantas pessoas em situação de sem-abrigo juntas num sítio, poder conversar com elas, perceber as suas necessidades, de tentar dar alguma resposta a essas necessidades e avançamos um pouco para além da necessidade da comida e da higiene”, refere.

Desde abril que Beatriz está a fazer voluntariado no CNN, depois de ter estado dois dias no Pavilhão do Casal Vistoso. Créditos: Ana Sofia Paiva

Em 2018, o número de pessoas em situação de sem-abrigo era de 367, indica a assessora. Com o início da pandemia e os “novos sem abrigo” – pessoas em situação precária antes da pandemia e que com o abrandamento da economia ficaram sem habitação e sem emprego – o número aumentou consideravelmente na cidade. Dina Nunes garante que passaram cerca de 550 indivíduos pelos cinco centros e mais de 100 conseguiram sair dos albergues e equilibrar a vida.

Beatriz concorda com os dois homens ao afirmar, tal como a própria t-shirt evoca, que todos têm direito à habitação e que não deviam investir em todos os prédios para alojamentos locais ou Airbnb. E, no decorrer daquela conversa, os homens agradeceram por falar com eles e Beatriz desabafa: “Antes não percebia, mas agora vejo que o que eles querem é apenas falar, alguém que os oiça”. E com o tempo, o cansaço emocional foi ultrapassado e hoje já não encara o voluntariado da mesma forma: “É engraçado porque uma coisa que começou a acontecer é que comecei a ter mais gosto em vir para aqui porque criei laços com eles”.

O relógio marca as cinco e meia da tarde e Beatriz vai para a zona dos balneários, um sítio demarcado por duas mesas para que seja cumprida a distância de segurança. Está na hora do segundo banho do dia e os utilizadores, em fila, pedem à voluntária peças de roupa, gel de banho, champô ou lâmina. Após cada entrega, o álcool gel é colocado nas mãos de forma mecânica.

Neste sítio, Beatriz relembra um episódio com um senhor muito vaidoso, que foi transferido para a Pousada da Juventude no Parque das Nações: “Ele demorava uma hora e tal a escolher a roupa, nunca nada era bom, nada servia. Ele era muito fofinho, mas houve um momento em que temos de aprender a ser fortes, então cheguei ao pé dele e disse ‘Senhor A., só temos mesmo esta’ e consegui escolher-lhe a roupa em cinco minutos”, conta a rir. “Depois até vim gabar-me que tinha conseguido (risos). Tenho saudades dele, por acaso”.

O ativismo, as manifestações e o Seara

No início de junho, o país acordou com a notícia sobre o despejo do Seara – Grupo de Apoio Mútuo de Santa Bárbara, que tinha ocupado um antigo infantário em Arroios para alojar pessoas carenciadas e sem abrigo. Estas pessoas “estão todas apoiadas e alojadas, ou nos nossos centros ou por via da Santa Casa da Misericórdia”, esclarece Dina Nunes, e dois desses homens foram transferidos para o CNN.

É o caso de Paulo, nome fictício, com pouco mais de 20 anos. Vem ter com Beatriz cheio de energia, depois de ter tomado banho e de se ter barbeado: “Meninas, já coloquei a minha máscara de beleza e me barbeei para amanhã estar impecável. Tenho o dia cheio de entrevistas de emprego, espero que corra bem”, diz com um grande sorriso.

Paulo é brasileiro e transgénero. Está em Portugal desde setembro de 2019 e começa a desabafar sobre a sua vida: “Aos 14 anos os meus pais foram assassinados, nós éramos do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra. Cansei de política. Claro que tenho a minha opinião, mas não quero saber dos políticos”, conta. Desde então quis mudar de vida e de país, a favela era pequena para Paulo: “A minha tia dizia ‘menino, você é maluco? Você não vai sair daqui, não’. Então eu fiz tudo direitinho”, ou seja, ingressou em enfermagem na universidade, mas de cinco apenas concluiu três anos do curso e decidiu que não era no Brasil que queria estar. Voou até Lisboa e encontrou um emprego.

“Eu trabalhava num restaurante em Alfama, mas não tinha contrato. Mas com isto tudo do Covid me despediram, até porque eu supostamente estava à experiência há mais de três meses”. Sem vínculo laboral, chegar ao Seara foi um pequeno passo. Paulo conta que ficou no edifício quando os seguranças entraram e, apesar de não o terem agredido, a “pressão psicológica era muito forte”.

Beatriz esteve na manifestação em frente à casa e esse facto foi o elo de ligação com Paulo. Em tom de promessa, diz que quer voltar a trabalhar para terminar o curso de enfermagem e que está cansado de estar no albergue. “Quero sair, eu sinto que estou num campo nazi. Quero viver num quarto ou numa casinha minha. Aqui à noite é muito complicado”.

Pouco tempo depois do episódio do Seara, organizou-se a 15 de junho um protesto em defesa das pessoas em situação de sem-abrigo, em frente à Assembleia da República. Das cerca de 30 pessoas que se juntaram, Beatriz e alguns dos homens do CNN fizeram parte do aglomerado. Se há uma manifestação sobre uma causa que a voluntaria apoia, é certo que lá estará, como foi o caso de receber Greta Tunberg aquando da sua visita a Lisboa.

Local onde os indivíduos pediam a roupa e produtos de higiene para o banho. Créditos: Ana Sofia Paiva

A CML tem em vigor o Plano Municipal para as pessoas em situação de sem-abrigo para 2019-2023, onde se inclui o Housing First, um programa que integra os sujeitos em casas individuais e são acompanhados na integração social. Atualmente existem 180 alojamentos ao abrigo deste programa, sendo que 100 destas habitações disponibilizadas são direcionadas para pessoas com doenças mentais ou consumo de drogas.

Até ao momento, afirma Dina Nunes, “quase 50% [das 100 habitações] estão ocupadas e durante este processo lançamos mais 200”. As duas centenas de habitações, ao contrário das 100 anteriores, não vão ter nenhum critério de seleção. A assessora aponta que há associações na área da prostituição a concorrer, “ou seja, poderemos vir a ter focos de ajuda a populações vulneráveis”, que é o caso das mulheres, que representam 10% da população sem teto.

Outra medida que ajuda a reintegrar estas pessoas é a Redemeprega, um programa da CML em parceria com outras entidades para auxiliar na procura de trabalho a estes indivíduos. “Há pessoas que só precisam de um emprego para se reorganizar” e uma viagem de regresso ao país de origem, ressalva Dina Nunes. Assim, “são pessoas que não voltam à rua, que têm uma solução”.

São 19 horas e Beatriz é substituída por outro colega, na casa dos 50 anos. Todos os voluntários têm direito, através da rede Serve the City, a um seguro contra acidentes. Também para ajudar nas despesas dos transportes, a CML disponibilizou cartões “Lisboa Viva” com viagens para o respetivo centro, conforme solicitado pelos voluntários mais carenciados.

Dina Nunes conta que a ajuda também chegou aos próprios voluntários: quatro deles estavam em situações precárias. Com a ajuda da associação Aires do Pinhal, que oferece apoio psicossocial, estes casos foram acompanhados e evitou-se a consequência mais grave: “Não vale a pena chegar ao estado em que estão os outros, portanto quanto mais depressa agirmos, menos são as consequências da ida para a rua”.

Beatriz sai do CNN com sentido de missão cumprida. Vê o horário dos autocarros para ir para casa. O turno de quatro horas passou num instante e despede-se dos homens. Alguns acenam com um “até amanhã”, outros continuam com o olhar preso no infinito e um cigarro na boca.

Ana Sofia Paiva

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