De Portalegre para o mundo, com certificado da NOVA FCSH, Rui Cardoso Martins – jornalista, escritor, dramaturgo e criador do Contra-Informação – tem palavras para tudo. Até para o seu obituário.
Rui Cardoso Martins nasceu em Portalegre, em 1967. Durante os tempos de escola, já se notava uma certa distinção na sua escrita. “Lembro-me de, na quarta classe, ter escrito uma composição super curta em que tive uma discussão com a professora”, recorda. “Era uma professora muito antiquada, que formava alunos usando reguada e palmatória (estou à vontade para falar, porque a minha mãe era professora e não era assim). Escrevi um texto em que o que se passava era absurdo, e não consegui explicar à professora que era assim”, confessa.
“Foi a primeira vez que usei diálogo. A minha irmã começou-me a pedir para ir buscar o pijama, porque estava cheia de sono, e eu, farto, respondi-lhe ‘Vai tu!’, ao que ela respondeu ‘Ai eu é que sou a criada, não?’E pus isto nesta ordem, de maneira que aquela professora me queria convencer de que aquilo estava errado. Eu é que tinha de responder ‘Ai sou teu criado?’ Eu expliquei-lhe que a graça da coisa é que ela me estava a pedir um favor e ela é que se sentia a criada, mas foi difícil isso”, conclui.
Apesar de não ter agradado à professora do ensino básico, o gosto de Rui pela escrita foi logo reconhecido pelos amigos. “O Rui é ligeiramente mais novo que eu. Dadas as suas características, sempre pareceu uma criança mais velha, e desde novo que me lembro de ele gostar de escrever, e de o fazer bem”, afirma Raul Ladeira, primo e amigo do escritor. Contudo, Rui não parecia ficar satisfeito em ser bom só numa área – hábito que não perdeu -, e por isso juntou à escrita a capacidade de tocar flauta e viola.
Através da música (e dos escuteiros) Rui aproximou-se de um bom amigo, António José Pereira. Os dois, que juntos tocavam Zeca Afonso, viveram várias aventuras. “Uma vez fomos tocar ao vivo, a acompanhar um Diaporama da autoria do Raul Ladeira. O Rui tocava flauta, eu tocava bandolim, o António Eustáquio tocava viola e dirigia. Íamos passando as peças, mas uma era mais difícil e nós nunca a tocávamos bem. Deixámo-la para o fim, na esperança de não ser preciso tocar. Mas, quando estávamos em palco, com o nervosismo, devemos ter tocado as peças muito mais rapidamente do que nos ensaios. Quando chegámos à última peça, ainda faltavam montes de slides. Tivemos de tocar essa peça, e correu muito mal, com muitas fífias. E pior ainda, quando chegou ao fim, os slides ainda não tinham acabado, então tivemos de a repetir. Só estávamos os três em palco, e o António disse baixinho ‘Agora é tocar até aprender’. Obviamente que isso provocou uma gargalhada tremenda, e enquanto eu e o António tocávamos instrumentos de cordas, a coisa disfarçava, mas o Rui tocava flauta”, recorda António José Pereira, entre gargalhadas.
Rui não guarda só memórias cómicas de Portalegre. No final de contas, nessa cidade “até o coveiro se mata”, como refere no livro “E Se Eu Gostasse Muito de Morrer”. Estas vivências ajudaram a moldar o pensamento do escritor, e a relação com o Alentejo tornou-se num elemento importante da sua obra.
A Chegada a Lisboa e o Jornalismo
Em 1985 saiu do Alentejo, para frequentar o curso de Comunicação Social da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. “Apareceu o curso, informei-me, lutei um pouco com os meus pais, e fui. Os meus pais queriam que fosse para Direito, mas era uma coisa que não me agradava, detestava a ideia”, afirma o escritor, cujas crónicas de tribunal já lhe valeram dois prémios Gazeta.
Como muitos alunos alentejanos que foram estudar em Lisboa, Rui sentiu dificuldades na adaptação: “aA transição é traumática, até o metro assusta. Ainda por cima sou muito distraído, perdi a carteira duas ou três vezes. Gerir o dinheiro e gerir as noitadas é difícil. Comecei logo a meter-me nas noitadas, não me fez mal”.
Acabou a licenciatura, passou por várias casas e esteve envolvido em algumas atividades. Contudo, uma das casas onde viveu diferenciou-se das outras. A Casa de Arroios, que tinha sido de José Cardoso Pires, era uma espécie de ponto de encontro, por onde passaram ou viveram Nuno Markl, José Fragoso, Luís Pedro Nunes, Nuno Artur Silva, e muitas namoradas. A casa também viu nascer muitas cenas do Contra Informação, entre outros projetos. “Essa casa era muito estranha porque passaram por lá pessoas que fizeram coisas muito interessantes. Uma delas foi o Luís Pedro Nunes, que foi meu colega no Público. Aquilo era noitada atrás de noitada. Depois, quando começou o Público, chegávamos a ir de direta das discotecas para as reportagens, era assim um bocado maluco”, confessa Rui.
“Entrei para o Público em 1989, quando estava a acabar o curso, e abriu um concurso. Lembro-me de ir com o Luís Pedro Nunes, para nos inscrevermos, de direta. Fomos fazer um teste, onde acabámos por ser escolhidos entre os 80 primeiros. Eu até posso dizer que isto teve um processo de seleção em que éramos 700 ou 800, no princípio, e eu fiquei em primeiro lugar, e o Luís Pedro Nunes em segundo, disseram-me depois nas notas”, recorda, com risos à mistura.
Durante o período em que esteve nos quadros do Público, Rui acompanhou alguns momentos muito importantes da História, como o cerco de Sarajevo ou as primeiras eleições livres na África do Sul. O jornalista, que chegou à Bósnia para fazer reportagem acerca da guerra, confessa: “Queria, como jornalista, perceber como se pode escrever numa situação de grande stress como é a guerra. Eu tinha de testar como me conseguia portar. Só no ano em que lá fui, morreram 81 pessoas como eu. Aliás, quando cheguei a Sarajevo, tinha morrido, dois ou três dias antes, um fotógrafo espanhol com 23 anos, que era mais novo que eu”. Esta perigosa viagem não alarmou particularmente os amigos de Rui. Raul Ladeira afirma: “Na altura não fiquei muito preocupado porque ele fazia isso com muita facilidade. Só depois de voltar é que soube que tinha estado debaixo de fogo. Éramos todos muito novos”. Apesar do perigo, o jornalista saiu ileso, com o seu colete “ridículo” da PSP e capacete de lado.
Rui recorda um lado psicológico da viagem: “Eu tinha uma espécie de sonho acordado, e às vezes meio a dormir, um pouco estúpido. Era que havia de morrer com alguém que me dava um tiro no lado direito da cara. Um daqueles medos meio malucos que temos que não se percebem bem. E na verdade, depois percebi que tinha ido para o sítio onde isso era mais provável acontecer”. Para além de ter estado no sítio onde o seu pesadelo se podia realizar, Rui também levou dali uma lição: “Tinha estado em Sarajevo, de férias, era uma sociedade ainda socialista, em transição. De repente estou lá outra vez e aquilo é tudo destruído. Nós vemos as coisas mais ou menos como seguras, mas basta faltar um bem esssencial e começa tudo em convulsão, e se começa uma guerra, toda a civilização vai ao ar”.
A diversidade da obra
A formação enquanto jornalista foi importante para a diversificada obra de Rui. “É dificil olhar para a obra num conjunto. Mas há uma coerência, pode ter a ver com a personalidade e a sua profissão de jornalista. São coisas muitos honestas. Desde muito novo que se notou nele essa força de se pautar pela honestidade”, afirma Raul.
Estes valores são transversais a toda a obra do alentejano, e o próprio afirma: “Eu acredito na busca da verdade, e a minha formação como jornalista é para isso, contar a verdade com independência”. Esta característica transparece nas crónicas que faz para a Antena 1, na rubrica “O Fio da Meada”. Nesse espaço, o cronista guia-se por uma máxima, e revela-a: “Não me meto em todos os assuntos, reservo-me o direito de escolher sobre o que quero falar. Nesse aspeto levo uma máxima que uso em tudo, que é a mesma máxima do Wittgenstein, ‘Se não estiveres disposto a conhecer-te melhor, a tua escrita não passará de um engano’. Eu só escrevo, disposto a conhecer-me melhor. Isto não quer dizer que tenha de escrever tudo o que penso, mas procuro dizer com verdade e sem medo aquilo que penso sobre o mundo. Quando começa toda a gente a falar de um assunto, a minha vontade até é fugir”. Apesar de falar de assuntos da atualidade, o escritor deixa uma garantia: “Não me interessa fazer política”.
Curiosamente, um dos trabalhos mais mediáticos de Rui Cardoso Martins focava-se na sátira política. “O Contra Informação foi um trabalho muito importante. As personagens ficavam queridas. Fizemos coisas muito engraçadas, e até de invenção de linguagem. A minha grande criação para a língua portuguesa é o ‘penso eu de que’, posso dizê-lo”, recorda.
Este programa de televisão acabou por estar presente num momento marcante na vida do escritor. “Eu ia a conduzir, a ouvir o Santana Lopes, tinha almoçado com os meus pais, estava cansado, vinha do Alentejo e estavam 40 graus, e ia com os meus filhos. Eu comecei a ter sono, e fiz uma coisa que não se deve fazer, que foi forçar mais um pouco. Quando dei por mim, estava a acontecer o acidente. Foi mesmo miraculoso não nos ter acontecido nada. O carro ficou todo partido, mas nós saímos ilesos. A sensação de que a minha vida podia ter terminado ali, e a dos meus filhos. A minha nem valia nada”, relata. Apesar de traumático, este acontecimento tem um lado humorístico. Rui garante que imaginou o seu possível obituário durante o acidente, que seria: “Co-autor do programa Contra Informação morre na autoestrada do Alentejo ao ouvir Santana Lopes a tomar posse”. Após este episódio, decidiu focar-se mais na escrita. “Às vezes é preciso uma catástrofe, ou quase, para nos fazer mudar de vida”, conclui. O princípio de ver o lado engraçado das coisas também se aplicou ao modo de algumas personagens que criou lidarem com situações dolorosas.
Rui também trabalha no cinema, como argumentista. Foi responsável pelo argumento do filme “A Herdade”, realizado por Tiago Guedes. O argumentista, que ficou orgulhoso do resultado final do filme, refere: “A base do filme é escrita por mim, e depois acontece uma coisa gira. Quando vejo o filme, vejo as minhas personagens a fazer coisas que não tinha visto, e isso é muito engraçado”.
O primeiro trabalho de Rui no mundo do cinema, contudo, não teve um desfecho tão positivo. “O que aconteceu foi que eu fiz uma reportagem para o Público, sobre míudos do bairro da Bela Vista. O Tino Navarro, que era produtor de cinema, leu-a, e convidou-me para fazer um filme sobre os bairros. Peguei no que já tinha feito, fui para Chelas, para conhecer melhor a realidade, criei uma história de amor e fiz o Zona J, que foi um êxito. Para isso, fiz uma aprendizagem rápida, que foi ler o argumento do Taxi Driver. A Zona J podia ter sido muito melhor, teve muitos elementos de telenovela que eu não gostei nada”.
Rui também escreve peças de teatro, e está neste momento a trabalhar numa, curiosamente sobre Jornalismo (para a qual teve de entregar mais uma versão no dia a seguir a esta entrevista.
Os livros e a falta de tempo
Com todos estes trabalhos surge uma dúvida. Como é que o escritor tem tempo para escrever livros? Esse tempo é cada vez mais reduzido, e o autor de “Deixem Passar o Homem Invisível”, confessa: “Queria ter mais tempo para escrever o meu próximo livro, gostava de escrever mais dois ou três livros. Porque é realmente aí que acho que faço um melhor trabalho”. O amigo António José Pereira partilha esse desejo, e afirma: “Tenho alguma pena, em termos de obra literária (que é muito autobiográfica, acho eu), que ele não tenha publicado mais livros. Acho que é onde ele se expressa melhor, e de facto os livros dele são fantásticos. Além disso, ele fez uma evolução literária extraordinária, especialmente no último livro, o Osso da Borboleta, que para mim é quase genial”. António ainda aborda a falta de reconhecimento do amigo, e lamenta: “Ainda não é devidamente reconhecido quer pela crítica, quer pelo público. Acho que a obra é de tanta qualidade e tão vasta, que é uma questão de tempo”.
Rui assume a culpa pela falta de tempo que tem, e confessa: “Vou aceitando tudo e sou um bocado parvo. Tenho uma vida desgraçada muitas vezes por causa disso. Mas porque também me foi dada uma oportunidade que muita gente não tem, e porque tenho de ganhar dinheiro para manter uma família”.
O escritor tem como influências literárias, por exemplo, Maiakovski ou Dostoiévski (o título do primeiro livro de Rui é baseado numa frase dita por um personagem de Crime e Castigo). O autor, que lamenta não saber russo, afirma: “Eu acho que eles têm a profundidade e a ligeireza que eu gosto na literatura, e que gosto também no Alentejo”. Mas o escritor fala também de outras influências: “O mais importante são as vivências. Tudo o que nos acontece deve entrar. O meu pai, a minha mãe, muitos amigos, as mulheres que tive e que perdi, a mulher que tenho, os meus filhos, viver em Lisboa, que é uma bela cidade, ter ido aqui e ali, os livros que li, tudo isso me influenciou. Estou em constante aprendizagem até morrer”.
O Alentejo é importante na obra do autor. Raul revela a ligação do primo à região: “Foi viver para Lisboa, como tantos, mas nunca perdeu a ligação. Mantém uma ligação muito grande a Portalegre e ao Alentejo. Quando ele é chamado para vir a Portalegre, a não ser que tenha algum problema de saúde ou trabalho, ele responde sempre com muita vontade”. Esta proximidade é confirmada por Rui: “Tenho muito orgulho em ser alentejano, gosto. Agora, não gosto de ser alentejano quando se entra na parolice. Não gosto de estar no cinema, como me aconteceu em jovem, e começam dois tipos a falar alto, usando como desculpa o facto de serem alentejanos. Com todas as forças estou a tentar lutar contra isso”.
Rui Cardoso Martins não gosta da ideia de ficar agarrado ao passado, e prefere olhar para o futuro. “Detesto jantares de turma a recordar o passado. Gosto de encontrar as pessoas, mas não vou celebrar o passado, nunca. Eu digo assim ‘Não perca o próximo episódio’, acaba assim o meu primeiro livro”. É também com este pensamento que encara o futuro dos filhos; um deles está a tirar, tal como o pai, o curso de Ciências da Comunicação (anteriormente Comunicação Social) na NOVA FCSH. “Não posso dizer que quero que ele siga o mesmo caminho que eu. Nem sei bem que caminho é que ele quer, mas ele vai encontrá-lo. Terá obviamente a minha ajuda, tal como a minha filha que está a estudar História. O maior legado que eu tenho para ele é a biblioteca que tenho em casa, bom acesso Wi-Fi e oportunidades de viajar. E terá sempre o meu amor. O amor é o mais importante que se pode dar a um filho”.