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“Isto anda tudo ligado” pela Ulmeiro há 50 anos

Uma das cooperativas culturais de Lisboa, a livraria editora Ulmeiro, recebeu uma nova casa, depois de meio século de existência e do seu despejo em Benfica. Tudo após uma exposição organizada por um investigador do CHAM – Centro de Humanidades da NOVA FCSH.

Da Amadora até ao rio Tejo, a ribeira de Alcântara serpenteia a maior parte do subsolo de Lisboa. Mas nem sempre foi assim. Antes de 1997, o curso de água alimentava a fauna e flora das Portas de Benfica, principalmente os ulmeiros que existiam junto à margem. O ulmeiro é uma árvore grandiosa, maciça, forte. Pode chegar aos 35 metros de altura e de diâmetro. A ribeira de Benfica, assim denominada naquela zona, alimentava as raízes das árvores, sedentas de água. Aquele era o seu habitat. Hoje, é o Centro Comercial Colombo. E a ribeira continua a desfilar, invisível aos olhos, por baixo de quem percorre o centro comercial.

Mas Ulmeiro é também o nome da livraria e editora fundada por José Ribeiro, amigos e família. Quase que acabou como os ulmeiros junto à ribeira de Benfica, mas uma exposição e uma antiga fábrica de armamento militar mudaram o curso do despejo na avenida do Uruguai, em Benfica. Estima-se que os ulmeiros possam alcançar os 600 anos. A livraria já soma meio século.

Em homenagem aos 50 anos como livraria, festejados em dezembro de 2019, e aos 50 anos como editora, assinalados este mês, Daniel Melo, investigador do Centro de Humanidades (CHAM) da NOVA FCSH, organizou uma exposição sobre a Ulmeiro entre maio e julho de 2019, na Fábrica Braço de Prata (FBP). “A Ulmeiro para mim era mais uma livraria editora, mas depois fui percebendo que tinha ali alguma singularidade e entendi que mais do que uma livraria e uma distribuidora, foi um centro cultural”, refere o investigador, que travou amizade com José Ribeiro há mais de uma década, quando se cruzaram a seu convite numa tertúlia sobre edição de livros.

De cabelos cansados pelo tempo, óculos a lembrar as milhares de palavras que lhe passaram pelos olhos e um sorriso tímido, José Ribeiro pouco parece ter 76 anos. É curioso por natureza, utiliza as redes sociais e o e-mail para divulgar livros e teve um blogue, O voo da Coruja, onde escrevia: “Eu não gosto daquela coisa “no meu tempo é que era”. O meu tempo é hoje, ontem e amanhã”, clarifica. A sua ligação com os livros começou em miúdo, apesar de a mãe ser analfabeta e o pai ter a terceira classe. Começou a ler graças a uma professora primária e às bibliotecas itinerantes da Fundação Gulbenkian que passavam por Alburitel, uma aldeia entre Ourém e Tomar, onde viveu até aos 20 anos.

Fez a escola industrial e palmilhou o seu caminho nas cooperativas culturais, nos pósteres e claro, nos livros e na edição. Mais tarde, aos 42 anos, decidiu tirar a licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. A sua experiência no mundo da edição e das indústrias culturais era já conceituada, ainda antes da fundação da Ulmeiro: começou por estar ligado à Obelisco, uma livraria na Amadora, e foi convidado a ser a fazer as edições na Itaú, uma empresa que servia refeições e que mais tarde decidiu ter um serviço de edição.

“A partir daí, o José começou a criar contactos e a ter conhecimentos, sobretudo em Lisboa”, conta Daniel Melo, o que levou José a convidar Maria Rosa Colaço, uma professora a trabalhar em Moçambique, para publicar o seu livro “A Criança e a Vida”. A edição foi bem recebida, em 1967, e anos mais tarde a Ulmeiro publicou a 40ª edição. “Na Itaú, o José Ribeiro publicou principalmente cartazes com poemas e já aí teve problemas com a Polícia Política”, explica o investigador.

É por essa razão que “estes espaços eram importantes no tempo da ditadura, porque havia menos possibilidades de acesso ao livro e às ideias, mas continuam a ser importantes porque são espaços que permitem a biodiversidade” de livros e de temas, aponta Daniel Melo. Contudo, tal facto deu um gosto agridoce ao livreiro e poeta: por um lado, criou imensos contactos com referências mundiais e nacionais, por outro ficou conhecido pela PIDE. E os problemas começaram.

José Ribeiro, fundador da livraria editora Ulmeiro

“O amor é um pássaro verde num campo azul no alto da madrugada”

Em dezembro de 1969, José Ribeiro funda a Ulmeiro com três amigos “que rapidamente se cansaram”, e o negócio continuou com a esposa Lúcia, com um irmão e uma irmã. Em janeiro de 1970, começa também a editar livros, em plena época ditatorial e a PIDE tinha-o debaixo de olho: “A mim diziam-me que eu era um comunista disfarçado de comerciante”, ri-se José, que lembra as apreensões de milhares de livros, com o objetivo de lhe fechar o negócio.

“Para me chatearem, de vez em quando chamavam-me para me devolver um livro, até que lhes disse “Epa vejam tudo e depois chamem-me, que eu não volto cá para levar um livro””, recorda José. Nunca passou uma noite na prisão, mas chegou a ser levado “uma ou duas vezes” pela PIDE, no máximo ia de manhã e regressava à noite. E porquê? A resposta estava à distância de um telefonema para um amigo muito importante no panorama português.

“A minha mulher ligava para o António Alçada Baptista quando me levavam e o Alçada ligava para o professor Marcelo Caetano, de quem era amigo, a dizer que a PIDE tinha levado um amigo e o Caetano resolvia o problema”, ri-se José, “isto é um país muito suis generis”, comenta. Um dos episódios mais caricatos que o livreiro relembra ainda antes do 25 abril prende-se com um póster da sua autoria.

José retirou um verso do livro de Maria Rosa Colaço, o primeiro que publicou na Itaú, e no poster de grandes dimensões vislumbrava-se um casal de namorados abraçados no campo. Lia-se “o amor é um pássaro verde num campo azul no alto da madrugada” e, em virtude dessa mensagem, um agente da PIDE apreendeu o poster. Mais tarde nesse dia, conta José, “voltou com a namorada, chamou-me à parte e disse: “Eu sei que você deve ter pelo menos mais um poster daquele que eu apreendi, e eu gostava de o oferecer à minha namorada”, e eu então vendi-lho!”, solta uma gargalhada ao relembrar.

Mas os tempos nem sempre foram fáceis. Com as frequentes visitas e apreensões, João Carlos Alvim desafiou José a criar uma editora com o amigo, Assírio Bacelar, e assim surgiu a Assírio & Alvim, em 1972. “A Assírio & Alvim nasceu um pouco para continuar com a atividade da Ulmeiro, publicando livros incómodos, tanto na ficção como no ensaio”, explica Daniel Melo. Algum tempo depois, José voltou para a sua Ulmeiro e mais tarde, em 1974, dá-se o 25 de abril.

Passou a Revolução dos Cravos com o seu amigo Zeca Afonso, que nessa semana tinha estado a dormir na sua casa, e na madrugada de 25 de abril, antes de rumarem para a baixa Chiado, a Ulmeiro foi o ponto de encontro de vários amigos.

As folhas do ulmeiro eram utilizadas para a alimentação dos animais e a sua casca tem propriedades medicinais. Estas árvores fornecem madeira de qualidade, resistente, flexível utilizada, por exemplo, na carpintaria. José construiu um legado que se estabeleceu na Avenida do Uruguai, em Benfica, e que 50 anos depois, em 2019, recebeu o aviso: o despejo iminente.

Por lá passaram António Lobo Antunes, que se aconselhava com José, Manuel Maria, um poeta galego, o cantor francês Léo Ferré, também porta anarquista, que atuou em Portugal no Coliseu dos Recreios e que editou um álbum pela Ulmeiro. José recorda esse episódio: “Quando lhe apresentei o álbum ainda no aeroporto, ele ao abrir disse: “Esses filhos da put* dos franceses nunca foram capazes de me fazer um livro destes!”. Foi muito engraçado”, recorda a rir. Outro encontro feliz foi com Lawrence Ferlinghetti, poeta americano da Beat Generation, com um século de vida feito em 2019.

Também Eugénio de Andrade fazia parte do seu círculo, que lhe envia as palavras “O difícil comércio das palavras” num postal e José aproveita-as para o título de um dos seus livros. Carlos Paredes e Mário Viegas foram outras das presenças daquele espaço. A Ulmeiro, de construção resistente e flexível, estava prestes a receber uma segunda casa, graças a uma exposição de Daniel Melo e com a parte gráfica de Pedro Piedade Marques, editor da Montag e designer, e a Nuno Nabais, responsável pela FBP.

Cinco décadas para estar tudo ligado

No antigo número 13 da avenida do Uruguai, os livros acumulavam-se em montanhas de folhas. Além disso, “é impossível a certa altura ter tudo arrumado, porque já não somos nós que procuramos os livros, são os livros que nos procuram a nós”, justifica José. Há 25 anos, o cenário era diferente, com uma reportagem da Ulmeiro de outros tempos. Daniel Melo decidiu assinalar os 50 anos da Ulmeiro como livraria com um documentário da organização de uma exposição intitulada Isto anda tudo ligado, Ulmeiro 50 anos de intervenção cultural 1969-2019, na Fábrica Braço de Prata.

O nome vem do primeiro livro que a Ulmeiro edita, de Eduardo Guerra Carneiro, em 1970. Depois da exposição terminar, em julho de 2019, José recebe a notícia que o número 13 deixaria de ser o espaço Livrarte por onde passaram várias pessoas: umas para serem aconselhadas em livros, outros apenas para serem ouvidas por Lúcia, a esposa de José. “Era um espaço familiar e eu até costumava dizer que se multiplicassem livrarias com este funcionamento, o Estado pouparia muito em antidepressivos!”, graceja José.

Quando Nuno Nabais, responsável pela FBP, soube do despejo, prontificou-se a ceder um espaço à Ulmeiro, como explica o investigador: “Houve esta coincidência, a exposição chamou a atenção para a Ulmeiro e fez com que o Nuno fizesse esse convite ao José para trazer os livros para aqui” porque “de certa maneira, a FBP é um pouco a alma gémea da Ulmeiro, sendo um pólo cultural”.

Apesar das dificuldades no setor, principalmente nas livrarias independentes e mais pequenas, por comparação aos grandes grupos de livreiros, José tem agora uma nova missão na FBP, com a dinamização da livraria. As atividades, para já, passam por workshops de gravura com uma prensa do século XIX e a produção de pequenas edições.

A Ulmeiro editou revistas, como a Sobreviver e a Três Continentes, e jornais de divulgação cultural, como o jornal Crítica. Foi galeria de arte, ao receber exposições de arte de António Ferra, discoteca, vendia discos e bilhetes para concertos. Esta cooperativa cultural foi pioneira em vários aspetos e o denominador comum, esse, só podia ser um: “Eu não concebo o mundo sem livros, acho que ia ser uma grande chatice”.

Por natureza, os ulmeiros são resistentes tanto ao frio, como ao calor. E a Ulmeiro parece agora estar num ambiente mais caloroso e propício a novos leitores.

Ana Sofia Paiva

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