Teria seguido ciências se na sua aldeia houvesse essa hipótese, mas as leituras que lhe chegavam pela carrinha itinerante da Gulbenkian também o interpelaram noutro sentido. Adelino Cardoso queria encontrar a entrega livre e despreocupada ao saber, no curso de *Filosofia. Em Coimbra, viveu momentos exaltantes logo no ano da sua chegada, mas também sofreu o desencanto no final da licenciatura, com a avaliação a depender do grau de marxismo dos trabalhos. Pelo caminho, ainda pensou no curso de Medicina, para mais tarde, já em Lisboa, experimentar tanto História como Psicologia. Esta é uma conversa difícil de espartilhar, como é comum acontecer com pessoas de interesses tão variados. Falou-se de filosofia, história, medicina e até houve lugar para o latim, mas sempre com um objetivo comum: perceber o homem na sua singularidade.
Filósofo, historiador, encontrou na medicina uma área de estudo em que convergem todos os seus interesses, como tão bem sintetiza a frase do título, de um dos filósofos a que mais se dedica: Leibniz. Adelino Cardoso é investigador do CHAM — Centro de Humanidades da NOVA FCSH e membro da Comissão de Ética do IPO e da Fundação Champalimaud.
Dizem-no um grande contador de histórias, de onde lhe vem essa veia de narrador?
Vem da infância. Sou aldeão, da terra de um grande filósofo, Pedro da Fonseca, Proença-a-Nova. A cultura na qual eu nasci era uma cultura oral, em que à noite, no inverno, particularmente o meu pai, mas também a minha mãe, contavam sempre muitas histórias. Por outro lado, parece-me que há sempre uma história para contar nas ideias, nos grandes sistemas de pensamento, há sempre uma história que tem a ver com o fundador, com o modo de viver das pessoas envolvidas num determinado círculo. A história elucida sempre o modo como o pensamento se organiza, como se desenvolve.
Em que momento surge a ideia de filosofia?
Surge muito cedo, quando estava ainda no liceu. Primeiro estudei num seminário, depois no Colégio de Proença-a-Nova, indo fazer exames ao Liceu de Castelo Branco — na altura os colégios não tinham autonomia pedagógica. Na fase final dos estudos secundários, senti um apelo muito grande da filosofia e tive de fazer esforço, porque as minhas notas do 7.º ano davam para entrar imediatamente em Direito, sem ter de fazer exame de aptidão, mas não para Filosofia. A média era a mesma, mas os critérios eram diferentes. Era necessária uma média de 16 no conjunto das disciplinas, mas também 16 nas chamadas nucleares — para Direito eram Filosofia e Latim e para Filosofia eram Filosofia e História. Tive de repetir o exame de História em setembro e garantir que tinha 16.
Não tinha um conhecimento muito próximo do meio universitário, porque eram muito poucas as pessoas de origem rural que estavam nas universidades. Para mim, a filosofia estava ainda muito ligada ao ideal do filósofo que eu conhecia da tradição e pensava que num curso de Filosofia ia encontrar aquilo que se chamava o ócio, a entrega livre e despreocupada ao saber, acompanhada de uma grande diligência pessoal, intelectual, ética — isso era, de facto, extraordinário.
Já tinha essas expectativas ainda adolescente?
Eu era um grande leitor, não só de filosofia como de outros domínios da literatura. Foi particularmente a leitura que me motivou.
Cresceu numa casa com muitos livros?
Cresci numa casa com alguns livros, não muitos, mas na altura havia uma instituição extraordinária que eram as Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, que iam às aldeias e que me forneceu de livros. A filosofia correspondia a um ideal, um ideal de vida também, e que não foi inteiramente correspondido quando cheguei à universidade. Fiquei um pouco dececionado.
Pouco ou, na verdade, ficou muito dececionado?
Honestamente, fiquei muito dececionado e com a minha deceção, pensei: “Não, não é isto que eu quero; há um curso que tem muito a ver comigo, o curso de Medicina.” Comecei a tratar daquilo que era conveniente fazer para pedir transferência.
Na altura, havia sebentas e bastava ler as sebentas, que eram uma forma muito elementar de transmissão do essencial a cada disciplina. As aulas não tinham aquela exigência e elevação que eu idealizava. Há uma parte grande que tem a ver comigo, com a minha idealização, por desconhecimento efetivo de como as coisas se passavam. Mas, como no decorrer do ano as coisas correram bem, a camaradagem com os colegas, a discussão que tínhamos entre nós, acabei por desistir da ideia do curso de Medicina, mas ficou este interesse, esta chama pela própria medicina, porque a medicina corresponde também a um ideal de vida.
Isto passa-se na Universidade de Coimbra.
Coimbra é que correspondia ao meu ideal. Estávamos no momento da crise de 1969 em Coimbra. Foram momentos muito exaltantes, do ponto de vista académico. De qualquer modo, em 1975 vim acabar o curso em Lisboa. Estava a fazer o 5.º ano [três anos correspondia ao bacharelato] em 1974, mas decidi que não era um bom momento para acabar. Não fiz nenhuma disciplina nessa altura, porque havia uma grande confusão sobre os trabalhos. O que me fazia confusão, embora eu fosse anarquizante e o marxismo não constituísse um problema para mim, era que a avaliação, logo a seguir ao 25 de Abril, estivesse a ser feita pelo grau de marxismo dos trabalhos. Não tinha uma posição antimarxista; como a maioria dos estudantes, tinha uma influência marxista muito grande, mas achava uma indignidade muito grande e achei que devia mudar de universidade e vir para Lisboa, onde concluí com muito gosto.
“pensava que num curso de Filosofia ia encontrar aquilo que se chamava o ócio, a entrega livre e despreocupada ao saber, acompanhada de uma grande displicência pessoal, intelectual, ética — isso era, de facto, extraordinário”
O bichinho da medicina continuava a inquietá-lo?
Esteve um pouco adormecido durante alguns anos. Mas a mim parece-me que há muitos aspetos em comum entre a medicina e a filosofia. Os médicos medicam e há uma forma de exercício filosófico — não é a única — que é a meditação. Justamente, meditar e medicar têm a mesma origem. Por um lado, tem a ver com a justa medida e, por outro, a procura da perfeição e a perfeição, antes de mais, própria. Este radical “med” tem a ver com a medida e com a justa medida, mas tem a ver também com o aperfeiçoamento, com a elevação, com a procura de algo melhor no plano pessoal e também no plano coletivo.
Esse interesse pela filosofia e pela medicina revela um homem que se identifica com o espírito da Renascença. Faz sentido este retrato?
Faz. Aliás, é interessante que o autor que mais estudei foi Leibniz, do século XVII, início do século XVIII. Foi sobre ele que fiz a tese de mestrado e a tese de doutoramento e é na comunidade de leibnizianos que eu desenvolvo grande parte do meu trabalho. Mas, em determinado momento, senti necessidade de mudar do século XVII para o XVI, para o Renascimento. Há um sentido de universalidade, de humanitarismo, mesmo de uma dimensão utópica, no Renascimento, que me atrai particularmente.
Também lhe dá resposta em relação aos seus interesses. Pode manter-se na filosofia, que é o seu mundo, e ao mesmo tempo explora um lado do saber que sempre o interessou, podendo aprofundá-lo.
É verdade. É uma fase em que os médicos são filósofos e afirmam-se frequentemente como filósofos. Há grandes filósofos, como Francisco Sanches, que é um médico com uma obra médica muito prestigiada e ao mesmo tempo é um filósofo muito fino. A sua obra principal, “Quod nihil scitur” (Que nada se sabe) teve um impacto muito grande. Começa de uma maneira extremamente fina. Ele não afirma “eu não sei”, afirma “eu nem sequer sei que não sei”. É uma obra de uma grande radicalidade, mas ao mesmo tempo é também uma obra que, através do questionamento, através da dúvida, pretende encontrar aquele que é o núcleo essencial do próprio saber. Não é uma obra só cética, no seu horizonte último, é uma obra que propõe um critério fundamental de saber e de ciência, no âmbito de uma república das letras que ele proclama no início, na dedicatória ao leitor.
Que quer dizer com “fina”?
É autor de uma filosofia fina. Uma das pessoas com quem trabalhei muito, Fernando Gil, usava muito a ideia de finura. Significa a capacidade de estabelecer distinções muito precisas e ao mesmo tempo mover-se, não ficar preso a elas, não construir fronteiras com elas. Fazer distinções muito finas e saber simultaneamente fazer articulações, mediações, mover-se para lá dessas distinções, saber identificar muito bem planos que parecem a mesma coisa, mas, de facto, são distintos. Ir àquilo que constitui mesmo o núcleo das coisas, aquilo que é, digamos, a singularidade, que está à nossa espera para ser evidenciada.
Regresso ao seu percurso académico e a um ano agitado em que decide parar para retomar no ano seguinte. Foi logo evidente que o percurso seria académico, a evolução na filosofia levava-o necessariamente no sentido de prosseguir os estudos?
É uma altura de grande indefinição. Por um lado, queria continuar a estudar, por outro, não queria em nenhuma circunstância fazer o serviço militar, mesmo depois do 25 de Abril, o que significava que, se fosse chamado, iria para o estrangeiro, para a Dinamarca.
Por que razão a Dinamarca?
Tinha a ver com amigos, exilados políticos de antes do 25 de Abril, havia uma comunidade. Estive lá a dar um curso em 1975. Já depois disso, se fosse chamado para a tropa era para aí que iria. Eu queria continuar a estudar, mas para mim não era claro. Por um lado, queria continuar dentro da filosofia, por outro, sentia necessidade de alargar os meus interesses. Depois do curso de Filosofia, inscrevi-me em História na Faculdade de Letras. Fiz o 3.º ano — havia cadeiras que eu já tinha de Filosofia. Depois, achei que História não era exatamente o que procurava e inscrevi-me em Psicologia no ISPA [Instituto Superior de Psicologia Aplicada]. Fiz o 1.º ano e no final percebi que, de facto, não era a história, não era a psicologia, era mesmo a filosofia que dava resposta às minhas inquietações, às questões que colocava.
Estamos no momento da criação do mestrado em Filosofia na Universidade Nova. Fiz a parte letiva e ia fazer a tese, mas acabei por não fazer a inscrição. O curso não estava homologado quando da sua criação, por isso decidi terminar o mestrado na Faculdade de Letras [da Universidade de Lisboa], onde fiz igualmente o doutoramento e simultaneamente fazia investigação no Gabinete de Filosofia do Conhecimento. Aqui estavam Fernando Gil, José Gil, Diogo Pires Aurélio, Maria Filomena Molder…, era um grupo de excelência no domínio da investigação e onde era muito forte a presença dos médicos.
Há um médico com o qual trabalho desde essa altura, com quem tenho aprendido muito, que eu considero, aliás, um médico filósofo, Manuel Silvério Marques. Não era o único: Henrique Macedo, António Martins da Silva eram outros médicos com os quais trabalhava regularmente e que tiveram importância no meu percurso.
Que faziam esses médicos no Gabinete de Filosofia do Conhecimento?
Os médicos faziam trabalho que tinha a ver com as suas áreas. No caso de António Martins da Silva, tinha a ver com o domínio da epilepsia, por exemplo. Henrique Macedo explorava questões que se aproximavam da filosofia, a questão das metáforas do corpo. Manuel Silvério Marques, a par de toda a investigação em hematologia, no âmbito do Instituto Português de Oncologia (IPO), punha questões muito fortes do ponto de vista ético e do ponto de vista epistemológico, questões, aliás, que continua ao longo destes anos a pôr. Daí que eu próprio tenha trabalhado no Centro de Filosofia da Medicina, no IPO, criado no início dos anos 1990, e posteriormente na Comissão de Ética, onde trabalho já há uns 20 anos, com grande empenho da minha parte.
Em que consiste o trabalho que faz na Comissão de Ética do IPO?
É um trabalho de reflexão e também de decisão sobre questões que podem envolver algum tipo de conflito ou dificuldade de decidir, além dos projetos de investigação que são desenvolvidos no IPO, ou projetos internacionais em que participam pessoas do IPO, que passam todos pela Comissão de Ética, para darmos um parecer.
Gostava de regressar ao seu interesse por medicina que, creio, surgiu logo no liceu.
No Colégio Diocesano de Proença-a-Nova havia uma dificuldade grande em seguir a área das ciências, porque não havia laboratórios. Quando chegávamos ao 6.º ano e ao 7.º, que equivale ao 10.º e 11.º, não tínhamos condições para prosseguir ciências.
Teria considerado essa hipótese?
Sim, na altura considerava muito Biologia ou Medicina. A par de Filosofia, eram os cursos com os quais teria ficado indeciso. Como não havia a parte de ciências e os meus pais não tinham condições monetárias para eu ir para Castelo Branco ou Lisboa, fazer o liceu, então a minha opção foi no âmbito das letras.
Mas no 1.º ano, quando põe em causa a sua opção pelo curso de Filosofia, considera a hipótese de mudar para Medicina. Era difícil mudar nessa altura?
A mudança em si, penso que era fácil. Uma vez que eu tivesse feito o 1.º ano de Filosofia, fazia um requerimento pedindo a transferência. Em termos pessoais, seria muito exigente. Não sabia física, não sabia química, tinha conhecimentos um pouco mais que elementares de matemática; seria exigente.
“A maneira como olham para o homem, para o corpo, e como olham para as doenças que podem afetar o homem, mas de uma maneira muito especial para o doente, com a perceção de que a relação terapêutica é fundamental no processo de cura”
Acabou por ter a medicina na sua vida. O que o move em relação a esta área?
Interessam-me as questões éticas, tanto na Comissão de Ética do IPO como na Fundação Champalimaud, onde mais recentemente entrei. Há um interesse pela própria medicina que curiosamente também me é inspirado pelo autor que eu mais estudo. Leibniz, numa “Carta ao Matemático L’Hôpital” diz “Oxalá os médicos filosofassem e os filósofos medicinassem”.
É uma frase síntese da sua escolha intelectual?
Sim, sem dúvida. É uma frase que vem ao encontro das minhas preocupações. De certa maneira, já fazia isso quando li essa carta de Leibniz, mas veio reforçar aquilo que era um desejo e, de certa maneira, uma prática. Neste momento, a minha atividade de investigação no que diz respeito à medicina desenvolve-se em dois planos principais, a história e a filosofia. É um trabalho que desenvolvo com colegas médicos, particularmente Manuel Silvério Marques, mas não só, José Morgado Pereira, Manuel Valente Alves, além outros médicos, e historiadores, psicólogos, e de uma equipa de classicistas — pessoas ligadas às línguas clássicas.
Procuramos compreender, com uma incidência particular no Renascimento, como é que os filósofos e os médicos que eram filósofos olhavam para a sua arte. A medicina era uma ciência, mas era também uma arte, em que a dimensão do engenho e do senso clínico, da capacidade de julgar sobre coisas contingentes e singulares era muito importante. Tento compreender como é que olhavam para o homem e para o corpo humano.
É muito interessante; tínhamos a ideia de que havia uma depreciação do corpo e o que constatámos é que nos autores do Renascimento há um apreço imenso pelo corpo humano. O corpo é um microcosmos, é uma expressão, é uma imagem do cosmos inteiro, mas não é uma imagem diminuída, o corpo é o arquétipo de construção do universo — acho isto, de facto, extraordinário. A maneira como olham para o homem, para o corpo, e como olham para as doenças que podem afetar o homem, mas de uma maneira muito especial para o doente, com a perceção de que a relação terapêutica é fundamental no processo de cura.
Rodrigo de Castro, um médico português do século XVI, princípios de XVII, numa obra que traduzimos, “O Médico Político”, diz que curam mais os médicos que inspiram confiança, a confiança vale mais para curar do que os médicos e os medicamentos. Isso é uma questão fundamental para a relação terapêutica. Em Francisco Sanches isto é também muito forte. Diz ele que o médico perfeito seria aquele que tivesse todas as doenças, porque então poderia compreender exatamente o que se passa com cada um. A dificuldade seria que nesse caso ninguém quereria ser médico.
Era um preço muito alto a pagar.
Há um limite, mas é muito importante esta dimensão da relação
No fundo, da empatia como centro da relação clínica. Há investigação científica que tenta validar este tipo de premissa, nomeadamente quando olha para o sistema imunitário como um sistema de resposta em que questões do ânimo e da confiança parecem interferir.
Sem dúvida. Por outro lado, seduz-me também o facto de a medicina ter sido, digamos assim, a primeira escola de tolerância. O médico, de acordo com a lição hipocrática e uma prática que se mantém ao longo do tempo, deve tratar não apenas os amigos, não apenas as pessoas da sua cultura, mas todas as pessoas, incluindo, em caso de guerra, o inimigo.
Rodrigo de Castro diz que o médico é muito movido por uma lei de humanidade, uma lei de compaixão por aquele que sofre e que há apenas um limite: quando a sua vida corre perigo ou sua liberdade; que possa de alguma maneira ser escravizado. Fora isso, seja uma pessoa simpática ou antipática, amigo ou inimigo, deve estar disponível para todos, porque há essa lei de humanidade. Acho extraordinário que haja uma lei no coração do próprio homem, do médico, que o incentiva a ter uma boa prática.
E uma consciência tão clara do valor da liberdade, a marcar um olhar muito particular sobre essa consciência humana.
Sem dúvida. O que me interessa sob vários ângulos são justamente as pontes, isto é, a aproximação entre a medicina e as humanidades.
Faz sentido pensar na medicina que não seja no universo da humanidade?
Não faz, mas acontece. Há, de facto, práticas médicas e conceções na medicina em que a dimensão de humanidade — não digo que está ausente — não é tão forte. Quando digo humanidades, refiro-me aos estudos das várias ciências em que o trabalho que é desenvolvido tem a ver com o homem em termos globais, com a vida social, tal a interação no plano da cidadania e no plano cultural que nós estabelecemos. Há múltiplas formas de o médico lidar com o doente. O doente que tem uma doença grave, por exemplo, há muitas formas de lhe dizer que tem determinado cancro, que é expectável ter um determinado tempo de sobrevida e não é indiferente para o doente a maneira, o modo, como se lida com ele nessa questão.
Conheço, aliás, a história de um médico que tem uma doença óssea a quem, em determinado momento, aconselharam um colega. É uma pessoa com uma grande exigência de humanidade — e das humanidades — e foi à consulta com esse especialista, que analisou com atenção os exames e no final lhe disse o que era melhor fazer. E ele disse-lhe: “Obrigado, mas eu não vou fazer isso, pela simples razão de que não me ouviu.” Sabe muito bem tudo do ponto de vista técnico, mas há aspetos que são muito importantes do ponto de vista da relação e que não estavam a ser considerados. Eu próprio tenho uma experiência recente. Depois de ter feito uma ressonância ao joelho direito, que indica haver problemas de alguma gravidade, em conversa com o médico, ele usou uma expressão que achei muito interessante: “Eu não trato ressonâncias magnéticas, eu trato doentes, portanto vamos encontrar a melhor solução.” Mas há, por vezes, uma tentação de sobrevalorização da técnica e daquilo que a técnica mostra, esquecendo-se da pessoa.
Há, aliás, uma grande discussão no que chamamos a medicina baseada na prova versus uma medicina mais holística, mais centrada no indivíduo. Há uma dimensão de singularidade que é muito importante e em que a dimensão da história de cada um pesa também muito.
A discussão que refere já se reflete nas escolas de Medicina?
Esta aproximação entre a medicina e as humanidades tem sido muito fecunda no plano das próprias humanidades. Somos nós, da área da filosofia, da literatura, da antropologia, da sociologia, que ficamos enriquecidos com esse pensamento e com o diálogo efetivo com as instituições médicas. Não nos cabe um papel paternalista de explicar aos médicos como é que devem fazer. De qualquer modo, há um debate que está a ter consequências nas escolas de Medicina. Por exemplo, há a introdução de Medicina Narrativa, coordenada pela Prof. Isabel Fernandes da Faculdade de Letras [da Universidade de Lisboa], em cuja génese eu próprio e Manuel Silvério Marques também estivemos — em que têm entrado pessoas de várias áreas, incluindo da área médica.
Há alguns trabalhos que são pioneiros, como é o caso do trabalho de Rita Charon em Nova Iorque [fundadora e diretora executiva do Programa de Medicina Narrativa da Universidade de Columbia]. Tem uma componente muito precisa, do ponto de vista médico, mas com preocupações muito grandes de compreender a história do paciente, de o ouvir, de entrar em toda a sua dimensão psicoafetiva. É um caso exemplar, mas não é um caso isolado. Parece-me que há de facto uma transformação das práticas médicas, na qual nós [das humanidades] somos convidados a participar.
“A comunicação é tanto mais genuína e tanto mais forte, quanto nós conseguimos sentir que o outro, neste caso o médico, está a compreender-nos naquilo que em nós é único, naquilo que constitui a nossa singularidade. É isso a base da vida em comum, é isso a base do amor”
Disse-me que o seu grande interesse atual em relação à medicina é encontrar pontes com as humanidades. O que está a ser feito em termos de investigação?
O que me interessa é a questão da relação e, justamente, a tentativa de compreender o encontro entre as duas subjetividades, na relação médico-paciente. Esta dimensão de intersubjetividade é importante.
É fundamental que o médico diga a verdade e diga toda a verdade ao doente. Mas não é uma relação verdadeira do ponto de vista médico que o médico, sem mais, de uma forma seca, diga ao doente qual é a sua afeção e qual é o tempo de sobrevida, numa situação de doença grave. Isto é, a comunicação da verdade, e a própria verdade, é um processo.
Interessa-me compreender como é que, no jogo intersubjetivo do médico com o paciente, se joga uma parte importante do processo de cura do próprio paciente. O mais importante é a relação e a dimensão subjetiva e intersubjetiva no meio dela e esta questão, sempre muito difícil, que tem a ver com a verdade, o que é a verdade. A verdade não é uma fórmula, um enunciado que se transmite a outro, mas a verdade como um processo que é vivencial e que pode efetivamente ser transformador. Há uma discussão de certa maneira teórica sobre a verdade e a sua comunicação.
Percebe-se em tudo o que vai relatando que há um interesse histórico, mas curiosamente não o ouvi fazer uma referência inequívoca a história.
Os autores do período do Renascimento interessam-me, na medida em que neles há indicações muito precisas e uma reflexão de como é que o médico deve estar perante o doente. Há um aspeto muito importante: na altura não eram os doentes que iam ao médico, era o médico que ia aos doentes. Estavam em casa e eram visitados, inicialmente uma ou duas vezes por dia, diz Rodrigo de Castro, depois a frequência das visitas ia diminuindo. Há toda uma reflexão sobre como é que o médico deve estar perante o doente, como é que lhe deve inspirar simultaneamente respeito, mas também confiança, como é que deve lidar com o doente e com os cuidadores — a expressão de Rodrigo de Castro é “assistente”. O assistente é alguém que está permanentemente com o doente, que tem uma relação de afeto com ele, que é um bom observador e que tem a capacidade de transmitir ao médico tudo aquilo que se passa com o doente. O doente irá explicar ao médico tudo o que se passa, mas compete ao cuidador complementar o que é dito.
Há toda uma reflexão muito importante da história, no caso, por exemplo, de Rodrigo de Castro, ou de um autor com o qual estou a lidar neste momento, Filipe Montalto, também português, judeu, que se exilou. Foi primeiro para Itália e depois para a corte de Paris, onde escreveu uma obra muito importante, “Arquipatologia”, sobre doenças mentais. Interessa-me ver não só a maneira como entende a doença mental, uma doença da cabeça que envolve igualmente o coração. Na expressão dele, há um consenso, uma harmonia, há uma ligação entre todas as partes do corpo e concretamente estas duas.
Coração no sentido fisiológico ou na sua dimensão metafórica da relação afetiva?
Na dupla dimensão. Ao coração estão ligados os sentimentos, o amor, mas também a alegria, a tristeza, sentimentos de euforia. Tudo isso em articulação com o ânimo, com o intelecto, com as outras faculdades.
Quando eu dizia há pouco que há autores que são muito finos — nós temos muita dificuldade em traduzir obras como esta. Traduzimos metade, estamos agora a traduzir a outra metade. Há palavras muito diferentes para dizer, por exemplo, “dor”. “Dor” é uma palavra muito geral, mas “mortius” já é uma outra palavra se se quer dizer que é uma dor meramente física. Há termos também diferentes para exprimir a dor predominantemente psicológica.
Na obra de Filipe Montalto, encontramos uma reflexão muito interessante sobre o particular, sobre o singular. Tem algo que não é muito comum na literatura médica portuguesa que é um concilium — um parecer especializado que o médico dá a pedido de outro médico que, por escrito, explica um caso, portanto, uma história clínica, concluindo “eu não percebo bem, para efeitos de diagnóstico e para efeitos de tratamento, qual é a boa terapia”. Em geral era enviado a médicos muito prestigiados. Filipe Montalto tem um concilium sobre um caso que aparentemente seria uma melancolia hiponcondríaca. Ele diz: “Não, não é isso, trata-se mesmo de uma hipocondria.”
Acho muito interessante a maneira como um caso particular é abordado de uma forma muito livre e ao mesmo tempo de uma forma muito humana e muito ligada à natureza e a toda a vida de relação que os homens têm pelo processo de cura. Tem uma chamada de atenção para a importância do contacto com a natureza, mas também para a música, os jogos, as histórias.
Interessa-me compreender a forma como lidavam com a singularidade, porque nós somos singularidades que jogamos, que lidamos uns com os outros. A comunicação é tanto mais genuína e tanto mais forte, quanto nós conseguimos sentir que o outro, neste caso o médico, está a compreender-nos naquilo que em nós é único, naquilo que constitui a nossa singularidade. É isso a base da vida em comum, é isso a base do amor, é isso que move os médicos, que move os nossos filósofos e que move, com certeza, as pessoas, de uma maneira geral.
A medicina, no fundo, é uma zona de interseção que junta muitos dos seus interesses e, a partir dos quais, há muita investigação que pode ser feita.
Há um espaço de afinidade entre a filosofia e a medicina. Quando falo em pontes entre os dois domínios, são pontes em que há um mover de fronteiras; por ventura, há mesmo um quebrar de fronteiras.
O que eu acho extremamente interessante é que a medicina filosofa, na medida em que é levada a aprofundar os problemas que se lhe põem. Há questões que são eminentemente filosóficas que os médicos se põem. Por outro lado, a nós, no âmbito da filosofia, há sempre alguma coisa que nos faz pensar. E o que nos faz pensar vem frequentemente de áreas que não são exclusivamente filosóficas.
A medicina é uma ciência e uma arte que tem essa grande capacidade de nos interpelar e de nos fazer pensar, mas são questões genuinamente filosóficas, que vêm da medicina porque estamos num terreno que é de facto comum.
Fotos de Marta Fiolić
*Opta-se por maiúscula quando designa nome de curso ou disciplina