A pandemia também afetou a arqueologia na NOVA FCSH. As escavações não foram imunes ao vírus que colocou toda a gente em casa. Se, por um lado, as aulas puderam continuar por Zoom, nem tudo se fez à distância. Quando o verão chegou, a formação prática continuou; reinventou-se.
Depois de 100 anos de ocupação portuguesa, Alcácer-Ceguer ficou entregue aos tempos e nunca mais foi povoado. Fez-se ruína. E ainda bem. “É o sítio ideal para qualquer arqueólogo”, conta André Teixeira, investigador na NOVA FCSH”, permite-nos entrar diretamente, sem perturbações, numa cidade de há vários séculos”. A pequena cidade muçulmana foi conquistada em 1458. Permanecia no centro do estreito de Gibraltar, onde a Europa e a África quase se tocam. Inicialmente, era uma porta de entrada. Depois, foi abandonada.
André Teixeira escava em Marrocos desde 2008. Este ano, também ele teve de abandonar temporariamente Alcácer-Ceguer. A cidade é apenas um dos muitos sítios arqueológicos onde trabalha, em permanente articulação com o ministério da cultura de Marrocos. Verão após verão, ruma aos locais onde os portugueses estiveram, durante a expansão, no Norte de África — mas não este ano. Em 2020 ficou em Portugal.
“Todos os projetos internacionais foram cancelados”, lamenta. As fronteiras fecharam. Reinava a incerteza sobre o futuro das escavações. Com o diálogo de parte a parte, depressa se tornou evidente que a retoma não ia ser para breve. Apesar de tudo, nada afetou a colaboração. “O nosso projeto no Norte de Africa, por ser internacional, radica já uma grande confiança com os colegas Marroquinos”, explica o professor. “Todos nos lamentamos pelas escavações não poderem continuar, mas não houve qualquer constrangimento institucional”. O financiamento do projeto, proveniente da embaixada de Portugal em Marrocos, foi reconvertido. Por enquanto, as ferramentas de escavação ficaram arrumadas na gaveta. Entretanto, André Teixeira prossegue na formação dos alunos, por cá, longe do estreito de Gibraltar.
Pior sorte teve Marta Capote, aluna de mestrado em Arqueologia. No verão de 2019, acompanhou o professor André Teixeira a Alcácer-Ceguer. “Quando lá fui no ano passado, só tinha uma ideia para a tese, não tinha ainda o plano delineado”. O olhar de Marta prendeu-se na igreja-mesquita da cidade. O edifício tem uma história curiosa: uma mesquita que não foi derrubada, mas antes reconfigurada para servir como igreja cristã. Aquilo que interessava a Marta eram as marcas da transformação. As mesmas que são compreendidas através dos vestígios. “Apesar de ter a sorte de ter algumas coisas em formato digital, acabei por não poder trabalhar os materiais do sítio arqueológico pessoalmente”, lamenta Marta, “não ter o tato influencia muito a interpretação”.
Escrever uma tese em confinamento provou ser um desafio. O contacto com o seu orientador foi limitado. “Fazer uma tese é um trabalho solitário. Afetou-me a motivação”. A pandemia colocou-se entre Marta e Alcácer-Ceguer. Afastou-a da fonte. Como ela, estiveram muitos alunos que, por força da pandemia, escolheram não estagiar. A formação em arqueologia comporta, desde a licenciatura, estágios no campo, para contactar com escavações em períodos diferenciados. “É uma pena nem toda a gente estar a começar já”, comenta Marta. “Fiz três anos de componentes práticas e mesmo assim acho que foi pouco”.
Das escavações ao laboratório
O avanço do mundo moderno não deixa pedra sobre pedra. Em Oliveira de Frades existem montículos delas, numa área de expansão industrial. Não são montes de entulho. São mamoas pré-romanas, que marcam sepulturas. Antes que uma delas fosse alcançada pelas fábricas, a arqueologia apanhou-a. “A câmara municipal de Oliveira de Frades cumpriu tudo aquilo que solicitámos como medidas de segurança e a escavação realizou-se”, explica Catarina Tente, responsável da cadeira de estágio em Arqueologia. Em conjunto com um colega da universidade do Algarve, acompanhou um grupo de 5 alunos a Oliveira de Frades, para assistir na sua formação prática.
“Mais do que no trabalho de campo, onde conseguimos cumprir as medidas de segurança, o problema prende-se com a alimentação, a higiene e as dormidas”, esclarece Catarina Tente. As escavações fora de Lisboa são habituais. Acontecem, frequentemente, através de parcerias com entidades locais, que suportam custos logísticos. Habitualmente, os alunos dormem em camaratas. As refeições decorrem em espaço comum. As deslocações são em conjunto. Com a pandemia, foi preciso outros cuidados. A escavação em Oliveira de Frades, que durou 15 dias, só aconteceu porque se conseguiram quartos individuais.
“Apesar de a faculdade ter aplicado as regras da DGS ao trabalho de campo e de laboratório, a verdade é que nem todas as escavações tinham condições para trabalhar”, explicita a professora. Este ano, a oferta formativa foi diferente. Passou, em primeiro lugar, por ficar mais perto de casa, em Lisboa. Depois, o departamento de arqueologia aposto em atividades laboratoriais, que envolvem desenho, digitalizações, análise de peças e inventário. “Este ano acabamos por fazer uma oferta mais diversificada para poder receber o máximo de alunos possível”, elucida.
A nove quilómetros da FCSH, existem caixotes por todo o lado. De facto, são duas amplas garagens, recheadas de caixotes. Apesar de parecerem desarrumadas, aqui reina a ordem. Quase se diria que é um cenário de Spielberg, mas o filme não é esse. Os arqueólogos que aqui trabalham não usam chicote nem chapéu fedora. Estamos no depósito municipal de arqueologia de Lisboa. As aventuras que aqui se fazem são em bancada individuais. Nelas, os alunos contactam com os ossos, a madeira e a pedra.
Rodrigo Banha da Silva é professor na NOVA FCSH. A par disso, faz a gestão do depósito municipal de arqueologia de Lisboa. Esta ponte entre a academia e a arqueologia municipal permite-lhe oferecer aos alunos um contacto único com o acervo da cidade. “Normalmente é nesta componente prática que há uma grande interação entre os alunos e o professor”, explica Banha da Silva. “É um pouquinho como o internato médico. Os alunos acompanham o professor e metem as mãos na massa: lidam direta e fisicamente com informação arqueológica”.
“A covid-19 veio trazer, numa primeira instância, a suspensão total das atividades, por haver uma componente de medo e incerteza”, conta. Apesar disso, o deposito municipal de arqueologia de Lisboa voltou a acolher alunos. Em junho, as atividades recomeçaram a meio gás. Em julho e agosto, de forma mais intensiva. Mas as regras tinham mudado.”[O recomeço] introduziu uma serie de gestos quotidianos e de relação interpessoal, muito importantes quando estamos em laboratório”, explica. A quantidade de pessoas envolvidas diminuiu. No máximo da afluência, foram apenas 12.
Fora da academia
Na maré baixa, podia ver-se o esqueleto de uma embarcação de grande porte. No século XVII, os transeuntes que passavam na Boavista, em Belém, podiam adivinhar-lhe a sepultura. “As estruturas colapsaram: ficamos ali com um livro aberto”, explica José António Bettencourt. Hoje, o Tejo está mais longe. Lisboa conquistou espaço ao rio. No século XIX, construi-se um aterro. O barco subterrou-se. Na superfície, existia uma fábrica. Agora, existe uma obra. Amanhã será um hotel.
José Bettencourt é especialista em arqueologia subaquática. Para além de ensinar na NOVA FCSH, faz arqueologia fora da academia. O barco da Boavista está a ser escavado por ele, no âmbito de arqueologia preventiva. Nas obras em que participam, são apenas uma parte da equipa, a par dos pedreiros e dos eletricistas. Seguem o calendário da empreitada. E como a construção civil, não estiveram muito tempo parados. “A maioria das empresas de arqueologia continuaram a trabalhar durante o período de confinamento inicial, nós não”, conta José Bettencourt. “Mas depois, quando começaram a existir menos constrangimentos à circulação, começamos logo a colaborar com empresas no terreno, nos projetos em que damos consultadoria especializada.”
Na Boavista, as escavações estão a decorrer no âmbito de projetos de reabilitação urbana, feitos por privados. O património arqueológico tem de ser salvaguardado. José Bettencourt e a equipa adentraram nos níveis lodosos da antiga praia fluvial para resgatar as peças do barco. “Aquilo que temos é a estrutura visível e estamos a fazer a sua documentação, desde registo fotográfico à descrição de todos os detalhes construtivos”, detalha, “depois vamos remover essas peças e colocá-las em tanques de água para manter o seu estado de conservação”. Pouco mudou com a pandemia. O trabalho precisa de continuar, com as devidas medidas de segurança. Só não existem alunos.
“No caso da arqueologia subaquática, o espaço é sempre limitado”, remata o professor. “A logística já costuma ser complicada para as equipas que temos envolvidas. Este ano, não conseguimos receber alunos”. Normalmente, estes trabalhos fazem-se a bordo de pequenas embarcações. O espaço é reduzido. É difícil manter o distanciamento. “Talvez regressemos no próximo verão, se as coisas estiverem mais controladas”, admite. Mesmo assim, tudo é incerto.