Como era viver a homossexualidade na ditadura de Salazar? O que mudou na sociedade depois da revolução dos cravos? Investigadores da NOVA FCSH respondem a estas perguntas com estórias que davam uma peça de teatro.
O pano sobe. O ator veste a personagem, cede-lhe o corpo e dimensão psicológica e a trama começa. Apenas termina quando a vida se finda. Esta representação é a vida de quem está preso num corpo que não é seu ou simplesmente tem orientações sexuais diferentes, e que durante muitos anos acaba por ser esta figura, no ato de representar na sociedade.
Valentim de Barros escolheu não teatralizar as suas escolhas numa época onde a ditadura estava no primeiro ato, e acabou por ser ele próprio manipulado e dedilhado como uma marioneta pela família e sociedade. Dos 69 anos que viveu, mais de 40 foram encarcerados no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, por ter uma doença: a homossexualidade.
Nunca a escondeu, teve o primeiro namorado aos 14 anos, aprendeu a dançar no Teatro Nacional D. Maria II sem o conhecimento dos pais, viajou para os palcos de Barcelona, Berlim e Estugarda. O travestismo foi o seu passaporte para fugir da Guerra Civil de Espanha, em 1939, quando foi preso pelos Republicanos. Conseguiu refugiar-se num convento, vestiu-se de freira e assim escapou para Génova, em Itália. Mais tarde, segue para a Alemanha Nazi.
No percurso tornou-se um amante fervoroso com um temperamento especial. Na Alemanha, Valentim “teve um episódio de toxicodependência e atacou um colega de camarim (…) houve uma disputa entre eles e aquilo tornou-se incontrolável”, conta António Fernando Cascais, investigador no Instituto de Comunicação (ICNOVA) da NOVA FCSH, que, entre outras áreas, investiga as questões LGBT.
O bailarino foi entregue à PVDE do Porto e pediram um exame psiquiátrico no Hospital Conde Ferreira “que ditou tudo o que lhe aconteceu no resto da vida”. Depois da avaliação, num acesso de fúria destruiu as instalações da Polícia e fugiu. Mais tarde, acabou por ser internado no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, pela mão da própria mãe.
Os relatos afirmavam que o bailarino era insuportável “e o facto de a mãe o ter internado foi determinante porque a família o rejeitou”, conta o investigador. O seu diagnóstico? “Psicopatia homossexual e pederastia passiva”, lê-se na reportagem do jornalista Bruno Horta no Sapo. Entre outros tratamentos, foi submetido a torturas e choques elétricos.
O campo da psiquiatria estava na ordem do dia. Richard von Krafft-Ebing foi o médico responsável pela “entrada definitiva da sexualidade” no campo clínico em finais do século XIX, escreve Raquel Afonso, investigadora do Instituto de História Contemporânea (IHC) da NOVA FCSH, no livro “Homossexualidade e Resistência no Estado Novo” (Lua Eléctrica, 2019).
O médico “considerava, tal como a maioria dos médicos entre 1870 e 1900, que em alguns casos a perversão não era um crime nem um pecado, mas uma doença, uma anomalia do sentimento sexual que deveria ser considerada clinicamente”, lê-se na obra da investigadora. António Egas Moniz, médico português reconhecido pelo seu trabalho no campo da neurocirurgia, escreveu inúmeros trabalhos sobre esta “patologia”. Defendia que “as práticas homossexuais levam à maior das desonras e às mais desprezíveis situações, sendo que o homem seria um ser sexual e a mulher essencialmente mãe e tudo o que se afastasse disto era anormal”, aponta a investigadora no seu livro.
Para reverter a “doença” da homossexualidade, Valentim foi submetido a uma leucotomia – uma operação ao cérebro -, em junho de 1948, curiosamente dois meses antes do Congresso Internacional de Psicocirurgia onde Egas Moniz recolheu apoios para a conquista do Prémio Nobel da Fisiologia e Medicina. Consegue-o no ano a seguir, graças ao método de leucotomia pré-frontal que descobriu, em 1935.
A operação “à qual ele foi sujeito foi sem o conhecimento e contra a vontade do médico assistente. E quando o médico assistente não estava, ele foi mandado para o Júlio de Matos pelo diretor do Miguel Bombarda”, aponta o investigador. A operação correu com êxito, mas Valentim continuou com os mesmos desejos sexuais e a convidar homens para a sua cama no Miguel Bombarda, apesar de estar mais calmo e obediente, lê-se na reportagem.
“Como na Urgência do Hospital Miguel Bombarda onde os rostos se engelham e os vultos flutuam, cambaleando, amparados à tartaruguinha desmaiada das paredes, velhos alcoólicos de dedos trémulos como agulhas de bússola, drogados de órbitas convulsas como céus de tempestade, senhoras em quem uma discreta e incomensurável tristeza se concentra nos ângulos em acento circunflexo da boca, arrastando sob a camisa de dormir menopausas magoadas”.
António Lobo Antunes, in Conhecimento do inferno (Lisboa, Vega, 1980, 4a ed., p. 64).
Depois da operação, Valentim tinha altas esporádicas nas quais dançava no teatro Éden. Contudo, depois de se travestir e ser apanhado a utilizar a casa-de-banho das senhoras, agrediu a senhora que o identificara. Em 1949, fica internado permanentemente. “Ele perde algumas faculdades [depois da operação]. Ele escreve uma carta em 1961 a queixar-se de roubos, ao diretor, e a carta é um pouco incoerente”, aponta António Fernando Cascais.
Preso na 8ª enfermaria, conhecida como Pavilhão de Segurança dedicada aos presos com doenças mentais, ali se recata na sua mente, na imaginação da dança que a sua vida teria sido. Depois do 25 de abril de 1974 tem liberdade para sair, mas não o faz. Já não era a sua Lisboa, as suas gentes.
Na primavera 1982, António Fernando Cascais conheceu-o no Hospital Bombarda: “Não falámos sequer. Ele já estava muito combalido, estava de pijama sentado na cama, foi-me apresentado pela enfermeira-chefe, mas ele não falou. Ele já estava muito doente”. A 3 de fevereiro de 1986, sozinho, na ala de segurança, Valentim desceu o pano da sua vida. O percurso podia ter sido diferente, mas acabou por não acontecer: “Eu lembro-me da enfermeira-chefe dizer que eles estavam ali porque não tinham para onde ir”, relembra o investigador.
Esta estória é conhecida graças à curiosidade de dois jornalistas que tornaram a vida de Valentim célebre: o jornalista Luís D’Oliveira Nunes que escreveu para o Diário de Lisboa, em 1968, e Maria João Avillez para o Expresso, em 1980. Mais tarde, as reportagens de São José Almeida, no Público, em 2010, e de Bruno Horta, no Sapo, relembraram esta vida.
Mas não é só o caso de Valentim que chamou a atenção numa época em que o homem era visto como a figura masculina de família, heterossexual e monogâmico. Figuras como Mário Cesariny, o poeta António Botto, Eugénio de Andrade e até mesmo João Villaret são exemplos de personalidades assumidas.
E as mulheres? Como é que o regime agia com as relações lésbicas? Não só dos homens reza a história e Raquel Afonso, investigadora do Instituto de História Contemporânea (IHC) da NOVA FCSH, recuperou estórias de quem viveu – e ainda vive – com uma máscara no rosto em relação à orientação sexual.
A face semioculta da sociedade
Se existisse uma frase para ilustrar a homossexualidade no Estado Novo, seria a de “todos sabem, mas ninguém diz nada”. O silêncio ensurdecedor em que se vivia, composto por frustração e alguma ignorância, permitia que os indivíduos das mais altas classes conseguissem contornar o sistema, enquanto que os mais pobres, de classes mais desfavorecidas, não tinham a mesma sorte e iam presos quando apanhados nos locais típicos de engate.
A Mitra, segundo Susana Trovão – à época assinava como Susana Pereira Bastos e é investigadora do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA) da NOVA FCSH –, no trabalho “O Estado Novo e os seus Vadios” (1997), refere que era o local de internamento de homossexuais apanhados pela polícia.
Desde a sua criação, em 1933, e até 1952, a Mitra recebia, também, mendigos e vadios, até ser transformada numa instituição parapsiquiátrica. A Colónia de Trabalho do Pisão era outro local para onde estes indivíduos eram levados, onde o trabalho forçado, à partida, deveria ter um efeito psicológico reversivo para a “doença” da homossexualidade.
Raquel Afonso hoje pode admitir, sem medos, que é lésbica. Mas primeiro teve que passar pela reprovação dos olhares dos colegas no ensino básico. Pensou que estava “maluca” porque se sentiu atraída por uma colega. Procurou ajuda, mas foi quando entrou para a secundária, em Sintra, que percebeu que tudo era diferente: “No dia em que vou fazer as inscrições a Sintra, a primeira coisa que vejo quando chego à rua da escola – nota que passei da aldeia para a vila – são duas raparigas aos beijos e eu pensei «bem, isto é diferente»”.
Assumiu aos pais, assumiu ao mundo e no seu recente livro. Sem qualquer tipo de problemas porque é “algo natural”. Mas nem sempre foi assim. O “safismo”, o outro nome para o lesbianismo, era visto como “degenerescência patológica”, que impossibilitava a mulher de cumprir o seu papel na sociedade, o de ser mãe.
“A mulheres eram muito invisíveis e portanto passam mais despercebidas, porque duas raparigas eram sempre amigas”
[“Clara”, 19 de fevereiro 2018]
A afirmação de “Clara”, uma das cinco mulheres lésbicas que Raquel entrevistou, desmistifica aquilo que à época se vivia. Se as mulheres trocassem carícias em público, não era problemático: “[As pessoas] levavam aquilo como «elas são só amigas», agora se fosse um homem a abraçar outro aquilo já era um escândalo”, exemplifica a investigadora. “Se fossem duas mulheres era perfeitamente normal porque as mulheres são afetuosas. Tanto que eu tive informantes lésbicas que chegaram a viver com outras mulheres, como casal, durante o Estado Novo, e ninguém chegou a descobrir porque eram só «amigas»”.
“Eu acho que as mulheres eram menos reprimidas que os homens. Eu acho que ainda hoje, há já uma aceitação, quase subliminar, da homossexualidade se for feminina. A homossexualidade masculina tem mais dificuldade em ser aceite. E nessa altura também era assim”.
[“Paula”, 31 janeiro de 2018]
Raquel entrevistou cinco homens e cinco mulheres e batizou-os com um nome fictício. Quis manter a igualdade entre géneros e procurou quem estivesse escondido no manto da peça da vida. A investigadora quis dar “voz àqueles que são subalternos” e não recordar as estórias mais do que públicas, porque “as histórias conhecidas podem ser muito boas, mas as pessoas como nós, «normais», que não são de uma elite, não se identificam”.
As décadas de repressão ainda hoje são visíveis nestes testemunhos difíceis de encontrar, afirma Raquel. Conseguiu por intermédio de uma professora amiga e “esta batalha foi das mais difíceis que eu travei ao longo do ano em que estive a fazer investigação”. O espectro de idades dos entrevistados é dos 63 aos 73 anos, à data das entrevistas (entre 2017 e 2018).
O medo era o motor do silêncio. Raquel refere que os homossexuais masculinos eram levados para as chamadas “terapias aversivas” e as mulheres homossexuais iam para a psiquiatria, conhecendo-se poucos casos de prisão devido à sua orientação sexual. Ana Clotilde Correia escreveu a tese de mestrado sobre o tema, no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), vasculhando os processos na Polícia Judiciária (PJ).
“Os pobres não tinham outra defesa… e os de classe média, portanto, também tinham menos defesas (…) Se se é pobre é à bofetada e ao pontapé e à carecada e tudo quanto é humilhante (…) aqueles que eram de outros grupos sociais, o Estado metia-os na pildra, dava-lhes tareia e mandava-os para o sanatório, para a Mitra. Onde eram esquecidos do mundo”.
[“Joaquim”, 19 dezembro 2017]
Não se falava, mas sabia-se. O Código Penal revisto em 1886, nos artigos 70º e 71º, punia a homossexualidade e a aplicação destas leis na ditadura acaba por ser mais apertada. Não há uma descontinuidade entre regimes como se pensa, refere António Fernando Cascais: “A questão do Estado Novo [é que] não é exatamente uma rotura, nem jurídica, nem social, nem epistemológica”, ou seja “os regimes políticos foram pegando onde cada um tinha deixado o estado de coisas. Portanto, não há uma rotura relativamente do Estado Novo à República, a lei mantém-se”.
Raquel não esquece uma estória de um entrevistado que a marcou. Os “arrebentas” eram conhecidos por chantagearem outros homens para se aproveitarem da sua vulnerabilidade. “Um dos meus interlocutores foi para o engate, engatou um homem e chegaram a um sítio mais isolado e o outro deu-lhe um excerto de porrada, assaltou-o e foi-se embora. E o que é que acontece nesses casos? Nada. Porque o homossexual não vai à polícia dizer que foi agredido e assaltado por um engate que correu mal”.
O caso ficou retido na memória da investigadora porque “as pessoas não se queixavam, era engolir e ir para casa. E isso fez-me um bocadinho de confusão, porque a maneira que ele contou… e nem dinheiro para o táxi tinha para ir para casa”, recorda.
Apesar de nos dias que correm o regime ser outro e de existir cada vez mais abertura às questões LGBT, ainda há quem não se afirme, talvez com a repressão e o medo social colado à pele. Os interlocutores de Raquel afirmaram-se às pessoas mais próximas, mas não à comunidade. Perceber o que aconteceu neste espaço de tempo – entre as décadas de 1930 e 1990 – é algo que se está a perder no tempo. “Estamos no final do tempo da recuperação com a idade avançada das pessoas. E sei que não consegui mais [testemunhos de] pessoas porque houve muitas a morrer por causa da SIDA nos anos 80 e 90”, esclarece a investigadora.
“As mentalidades não se mudam por decreto”
No Cinema de São Jorge, na Avenida da Liberdade, só há um acto para a peça de teatro “Mário”. Encenada e escrita por Fernando Heitor e interpretada por Flávio Gil, este drama é inspirado na vida de uma figura conhecida. Mário é um jovem da Cruz de Pau, que acaba por ser “adotado” e educado por um sacerdote que, em jeito de pagamento, utiliza o jovem para os seus caprichos sexuais.
Em contrapartida, Mário aprende a dançar e viaja pelo mundo como bailarino. Adora vestir-se de mulher e isso trouxe-lhe problemas. É internado no Hospital, sujeito a vários tratamentos de choque, e a maior parte da sua vida é vivida entre as fantasias de palcos e as quatro paredes, até à sua morte.
É-lhe familiar a história? Este monólogo é inspirado na história de Valentim de Barros, através do artigo da jornalista São José Almeida. Se hoje se pode falar e teatralizar o assunto, não foi imediatamente após o 25 de abril de 1974. Só quase dez anos depois, em 1982, é que o crime da homossexualidade foi despenalizado.
Grupos de ativistas começaram a formar-se, mas nada de sério. Só mais tarde, em 1996, é que se formou a Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo, conhecida por ILGA Portugal, a mais antiga do país. Raquel defende que “as mentalidades não se mudam por decreto. E por muito que existam as leis, a discriminação às pessoas LGBT não se vai embora porque se mudam as leis A,B ou C”.
António Fernando Cascais é um dos ativista mais antigo do país. Em 2023 celebra quatro décadas de defesa por estas questões e percebe que o problema de Valentim foi o de “exprimir-se de uma maneira muito afirmativa e muito vulnerável, muito indefesa. O Valentim de Barros devia-se comportar em público como o José Castelo Branco nos seus momentos de fúria. Hoje é espetáculo, na altura era perigoso”.
A vulnerabilidade e o medo da sociedade – mais do que a própria ditadura – fez com que as pessoas não quisessem mencionar o assunto à época. Era tabu. Mas com o avançar das décadas, é fácil observar cada vez mais manifestações da comunidade LGBT e a debaterem-se estes assuntos.
Mas há, de facto, mais abertura aos gays e lésbicas? “A minha tese é que a homofobia entrou no armário, mas não fez mais do que isso”, opina António Fernando Cascais. “O que eu digo é que as pessoas no fundo pensam exatamente a mesma coisa, só que não se atrevem a exprimir em público. Mas quando podem, quando sentem que têm impunidade e margem de manobra fazem exatamente isso. Fazem à socapa, mas fazem-no”, conclui.