De barbas grandes e pelagem distinta, o lince ibérico foi classificado em 2015 como uma espécie em vias de extinção. O trabalho de doutoramento de Margarida Lopes Fernandes, investigadora do CRIA da NOVA FCSH, permitiu auscultar a população de Mértola para a reintrodução do lince ibérico.
Pimiento correu com tal rapidez, a galgar o monte vestido de erva seca e pequenos arbustos, que apenas foi visível durante escassos segundos. Mal a porta da jaula se abriu, o lince ibérico macho, de um ano, correu em direção à liberdade, acompanhando um rebanho de ovelhas que paralelamente seguia na mesma direção.
O jovem lince é uma das crias que nasceram no Centro Nacional de Reprodução do Lince Ibérico de Silves e é o segundo a ser desenvolvido à natureza este ano em Mértola. Momentos antes, profissionais e alguns curiosos aguardavam a chegada do lince no ponto de encontro do Poço dos Dois Irmãos. A carrinha chegou com o animal e todos rumaram até ao monte onde se deu a libertação.
Os linces criam uma mistura de sentimentos e opiniões. Têm orelhas pontiagudas e uma espécie de barba, assemelhando-se a um tigre, embora o seu porte seja associado a um gato grande. A pelagem, essa, é a “impressão digital” de cada um, registada pelos profissionais antes da solta. A cadeia alimentar é variada e inclui coelhos bravos e até veados. Os dados recolhidos pelos técnicos do Instituto de Conservação das Naturezas e da Floresta (ICNF) revelam que a maioria dos linces estão com a mesma fêmea durante vários anos e protegem as crias de predadores.
No século passado, era comum a presença deste animal em Mértola, que originou a profissão de observador de linces. Mas a caça ganhou protagonismo e o lince ibérico foi classificado, em 2015, como uma espécie em vias de extinção, depois de vários anos rotulada com risco elevado de extinção. O trabalho de doutoramento de Margarida Lopes Fernandes, bióloga e investigadora do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA) da NOVA FCSH, é transversal a disciplinas sociais que têm como foco a reintrodução do lince ibérico no Vale do Guadiana.
Não se observava neste território um exemplar da espécie desde o final do século XX e, para Margarida, era necessário “auscultar a população local antes de um processo destes” porque “muitas reintroduções, até ao século XXI não correram muito bem, especialmente quando a população local não estava de acordo. E hoje em dia a conservação da natureza deve ser um processo o mais participado possível”, garante a investigadora.
Os resultados da reintrodução têm sido positivos, assegura Margarida, pois para além do crescente número de crias, estão 11 fêmeas presentes no território. A investigadora também atribui esse sucesso à monitorização dos colegas e à população local: “Temos aqui muitos testemunhos de observações na natureza dos locais com linces, e que rondam sempre à volta de algum fascínio, algum interesse, alguma emoção”. Em resultado desta identificação cultural, surgiram produtos relacionados com o lince ibérico, uma marca da vila: “De certa forma há uma apropriação social da espécie que eu acho que também é um indicador positivo”.
A reintrodução no Vale do Guadiana, em 2015, viu nascer quatro crias, depois do casal Jacarandá e Katmandu serem introduzidos na natureza. Mas antes “esse primeiro casal, em 2014, esteve no cercado de climatização, depois houve outros animais que foram para esse cercado por forma a aumentar a probabilidade de territorialização”, conta a investigadora. No ano a seguir, o número de casais aumentou e as crias atingiram o total de 11. Até 2018, o valor mais do que duplicou, passando para 29. Neste processo, perto de 40 linces adultos oriundos de outros centros de reprodução já foram libertados em áreas de adaptação ou diretamente na natureza.
A mortalidade do lince ibérico mantém-se abaixo dos 30 por cento, resultado da monotorização dos técnicos do ICNF. Até maio de 2019, três linces ibéricos morreram atropelados, sendo esta a causa mais grave e a principal no Vale do Guadiana. Para prevenir e alertar os trausentes e a população, foi colocada sinalização própria na estrada no Vale do Guadiana, devidamente mencionada na portaria e no despacho em Diário da República.
O regresso do “gato grande” à Península Ibérica
Em esforço conjunto, Portugal e Espanha uniram-se para conseguirem reintegrar a espécie na Península Ibérica. Avaliaram-se os territórios com 10 mil hectares “uma área suficientemente grande para albergar a população futura de linces” e os fatores de risco. Estas áreas estão assinaladas no projeto Life e são os locais onde as soltas ocorrem. É em dezembro e em março que as soltas acontecem – apesar de existirem exceções, como foi o caso de Pimiento – e por ano “são soltos cerca de seis, sete animais, consoante for a reprodução em cativeiro” em que depois “há uma distribuição pelas várias áreas de introdução”, explica Margarida.
Quando o animal é colocado na natureza, uma coleira acompanha-o. Esta serve para o monitorizar e perceber os comportamentos em liberdade. Quem explica este processo é Carlos Carrapato, técnico do ICNF e o responsável pela solta de Pimiento: “Os portugueses são muito McGivers e então arranjámos um tubo desses das caleiras da água, cortamos ao meio e sobrepomos uma sobre a outra, e o que resulta é uma mola”. Esta técnica inovadora permite que o lince não sufoque caso fique preso em algum obstáculo e ajusta-se ao pescoço do animal.
Apesar de o lince largar a coleira perto dos seis meses após a libertação, neste período é possível obter informação valiosa sobre os comportamentos e padrões dos linces, como explica Carlos: “Dos sete ‘gatos’ marcados todos largaram a coleira” mas “durante seis meses conseguimos obter informação daquelas crias que estão com as mães, que estão no território e onde é que estão especificamente”.
Mas como os portugueses “estão sempre a inventar”, este ano o técnico do ICNF garante o lançamento de uma tecnologia que permite ir mais além: “A Lora é uma tecnologia que permite gravar quase 24 horas de informação, consome muito pouca bateria (…) e conseguimos, num raio de 15 quilómetros, descarregar para uma antena a informação acumulada”. Um pequeno vídeo para o lince, uma grande informação para os técnicos do ICNF.
Na opinião de Margarida Lopes Fernandes, é importante que continue a haver uma ponte entre a população e a espécie, com a consciencialização do animal e da conservação, para que “não seja um tema que pertença só aos técnicos ou que seja de determinados especialistas”.
Após a tese de doutoramento de Margarida, foi organizada, no centro de Mértola, uma exposição elucidativa sobre os linces com documentos, atividades feitas com as crianças das escolas primárias, testemunhos e infografias. Conhecer melhor o lince ibérico quebra barreiras entre o mito e a verdade e com o recurso às novas tecnologias, é possível aprender mais sobre esta espécie. O lince ibérico esteve quase a extinguir-se e o esforço dos técnicos portugueses e espanhóis, com a ajuda da população de Mértola, prova que é possível aprender com os erros do passado.