Aos 40 anos começou a surfar e nunca mais parou. Na crista da onda, os “homens do mar” são as personagens principais da tese de doutoramento de Vera Azevedo sobre a vila da Ericeira.
De cara pintada pelo sal da água e pelo sol da Caparica, Vera Azevedo entra no café mais conhecido da zona, O Barbas, e afirma com um sorriso: “Esta manhã já fui surfar”. Em frente à praia, ainda há quem vá aproveitar o sol e verificar a temperatura da água em pleno outono.
Vera Azevedo é doutoranda em Antropologia e investigadora no Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA) na NOVA FCSH. O surf podia ser um passatempo de fim de semana ou apenas um escape sazonal, mas tornou-se um modo de vida para Vera e parte do seu objeto de estudo no doutoramento. Os pescadores e os surfistas são os “homens do mar”, como lhes chama, e são eles os protagonistas na investigação que está a conduzir na vila da Ericeira, nomeada Reserva Mundial de Surf em 2011.
“A Ericeira possui uma identidade piscatória muito vincada” afirma a investigadora. Contudo, os dados relativos ao número de embarcações no activo, por comparação com as escolas de surf, percebe-se que, em 2018, existiam mais escolas de surf do que barcos de pesca, apesar de em 2019 se ter registado o aumento de mais uma embarcação em atividade.
Com a atribuição da Reserva Mundial de Surf, a Ericeira deu o salto: deixou de ser uma vila sazonal – mais frequentada no verão – para uma vila com mais turistas e amantes de surf em todas as épocas do ano. E todo o crescimento económico e turístico começou a girar em torno desta prática desportiva. É nesta perspetiva que a investigadora quer entender o que mudou e se alterou com a Reserva Mundial de Surf. Contudo “é muito curioso perceber para onde está a caminhar a identidade da Ericeira, apesar da intenção das instituições locais apontar para a preservação do postal idílico de chegarmos às arribas e observar o labor nos barcos de pesca”.
Os pescadores dependem da DOCAPESCA e do Ministério do Mar e, por vezes, “há a sensação que tudo está a ser canalizado para o surf e a pesca ficou um bocadinho preterida”. Contudo, a Câmara Municipal de Mafra tem apoiado na continuidade desta profissão a nível local com a melhoria das condições no porto de pesca, e, apesar de não serem da responsabilidade da autarquia.
No rebuliço das ondas, o intuito das famílias dos pescadores focou-se em proporcionar uma vida melhor aos descendentes, sem o labor árduo da indecisão do mar. Os filhos dos pescadores eram instigados a estudar e a arranjar uma profissão mais estável, conta Vera. A pesca de pequena escala é uma profissão ameaçada quer por esta descontinuidade, quer pelo decréscimo do número de embarcações na década de 80, fruto da política para o setor do então governo de Cavaco Silva. Ironicamente, os pescadores “estão constantemente a dizer que vai acabar. O mais curioso é que nunca acaba”, ri-se Vera.
“Os pescadores mais velhos que já estão reformados continuam a ir nos barcos, apesar de não participarem na faina” porque ao mesmo tempo “não conseguem viver sem o mar”. Mas como é que os pescadores convivem com os surfistas? A investigadora afirma que os pescadores não têm uma opinião negativa sobre os surfistas e reconhecem a importância desta prática para o desenvolvimento da vila. O que é curioso, é que filhos de pescadores têm hoje negócios de surf na Ericeira.
Surf e bodyboard aos 40 anos
“Comecei a surfar com uma amiga minha que me desafiou a ir vê-la nas aulas de surf. Passado um mês já eu estava dentro de água”. E de uma gota de água na vida de Vera, o oceano tornou-se essencial no quotidiano e bem estar da investigadora. Ingressou numa das associações da Costa da Caparica e foi na crista da onda: “Passado um mês já estava a surfar, a minha amiga desistiu, mas eu continuei”, solta uma gargalhada ao relembrar. Nem uma lesão no pé a demoveu: deixou a prancha de surf e trocou por uma de bodyboard.
A vida da investigadora deu uma reviravolta: “Eu não sei muito bem explicar isto, mas depois de começar a praticar surf reestruturei toda a minha vida” tal como deixar “muitas vezes de sair à noite porque era melhor surfar do que sair à noite, e isso foi uma das coisas que mudaram”.
Vera começou por tirar o bacharelato em teatro e cinema porque não teve média para entrar em Antropologia, mas a decisão não a deixou desanimada porque as artes teatrais corriam nas suas veias. Os pais eram atores amadores. Uma década depois de ser atriz em várias companhias de teatro, entre elas na Fundação Calouste Gulbenkian e no teatro Malaposta, Vera terminou a sua carreira em Viana do Castelo. “Zanguei-me com o teatro” porque “começaram a proliferar as telenovelas portuguesas e a recrutarem modelos para serem atrizes”, recorda. Decidiu voltar a Lisboa e ser mãe.
A investigadora confessa que gosta de estar embrenhada em novos desafios. Ser mãe continua a ser um, mas um ano após ter o filho ingressou no Teatro Nacional D. Maria II, agora atrás das cortinas. E desde então passaram-se 21 anos na direção técnica. Com o correr dos anos, para tristeza da investigadora, o trabalho de “terreno” passou mais para de “escritório”, o que não agradou o espírito de Vera. No entretanto, tirou uma licenciatura e mestrado em Antropologia, o seu sonho, e a dissertação focou-se sobre o teatro em Moçambique.
“Eu não gosto de parar, gosto de estar em movimento e então decidi ingressar no doutoramento”. Estávamos em 2016, após uma tentativa falhada de aquisição de uma bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Vera conseguiu a bolsa e em 2017 começou o trabalho de campo sobre as comunidades piscatórias e os surfistas na vila da Ericeira. Neste momento da sua vida, o teatro não fazia tanto sentido. O surf sim.
Nos anos idos de 1980, os surfistas eram associados a alguma marginalidade. Hoje, a modalidade é encarada como uma prática de vida saudável, de contacto com a natureza, que exige uma boa preparação física e boas horas de sono. “O próprio conceito de surfista mudou”, salienta Vera “e há outro fenómeno que depois acontece, que é a recuperação do lifestyle”. O movimento artístico nas pranchas, a recuperação da música são exemplos do que se tenta reaver da tradição surfista.
Portugal é conhecido pelas suas ondas e este crescimento repentino do turismo de surf, na opinião da investigadora, colocou o país ao nível dos restantes países do mundo em relação à procura. No entanto, ainda há para ser feito, nomeadamente a nível da legislação de gestão de praias. Os discursos dos políticos nacionais e locais revelam essa preocupação, mas ainda é preciso pensar mais sobre esta questão, refere Vera.
A Ericeira enche-se com turistas e surfistas a paredes meias com os pescadores. O que podem aprender uns com os outros? Para a investigadora: “Creio que ambos partilham a mesma paixão de estar no mar, porque ambos não conseguem viver sem ele”, por isso “mais do que o que aprendem uns com os outros, trata-se do que é que podem acrescentar um ao outro”
A satisfação no elemento água
“Sal e Filhos – Gerações de Surf em Portugal” é um projeto da investigadora que se iniciou em 2015, o ano em que não conseguiu a bolsa da FCT. A ideia surgiu-lhe numa ida à praia com o companheiro, um amigo e respetivos filhos: “Estávamos na praia da Amoreira e disse “porque não tiramos uma fotografia à moda havaiana?” Então pensei porque não fazer uma recolha de gerações de pais e filhos que fazem surf”. E com a máquina, Vera começou um projeto pioneiro que, por enquanto, ainda tem mais expressão masculina do que feminina.
Começa a haver mais mulheres a entrar na água, afirma Vera, muitas delas para acompanhar os filhos, “mas que depois começam nesta prática assim, o que é giro”. Quando a Associação para a História e Museu do Surf (AHMS – Museu do Surf) soube do projeto de Vera, convidou-a a integrá-la. Esta associação sem fins lucrativos tem âmbito nacional e tem como objetivo inaugurar o primeiro Museu do Surf no país. Atualmente, tem um espólio variado porque “as pessoas aderiram a esta iniciativa e doaram-nos pranchas antigas, por exemplo”, afirma Vera.
Contudo, o espaço “rudimentar” onde o espólio está guardado começa a ser escasso. “Penso que a Câmara Municipal de Almada deveria estar mais interessada em apoiar o projeto e conceder-nos um espaço apropriado”, aponta a investigadora, “era preciso um trabalho museológico bem feito”. João Boavida, o primeiro surfista da Costa da Caparica, e João Luís Rocha, autor do livro “História do Surf em Portugal, As origens” (Quimera, 2008), são surfistas de renome e mentores da AHMS – Museu do Surf.
“O mar é viciante. É uma coisa que não consigo explicar e nenhum deles consegue”, afirma. Talvez por essa razão, Vera tenta estudá-lo.