Uma casa na Rua do Vale, em Lisboa, tem muitas histórias por contar, entre elas a descoberta de restos mortais de três recém-nascidos numa lixeira doméstica do século XIX.
Se as paredes falassem, esta casa teria muito para contar. A porta número 12 da Rua do Vale, em Lisboa, tem história desde o século XVI. Nem o terramoto de 1755 a destruiu e muitas são as intermitências da sua (quase) morte, agora a descoberto por uma equipa de arqueólogos da empresa COTA 80.86: José Pedro Henriques, antigo aluno da NOVA FCSH e arqueólogo responsável pela escavação, Tânia Casimiro, arqueóloga e investigadora na NOVA FCSH, e Afonso Leão, aluno de mestrado na NOVA FCSH.
“As casas da Rua do Vale tinham a lógica construtiva do século XVI, desde a edificação do Bairro Alto”, explica José Pedro e, por essa razão, todas possuíam um saguão, uma zona de pátio que funcionava como lixeira nas traseiras do edifício. Curiosamente, a recolha do lixo doméstico é uma realidade contemporânea de finais do século XIX, princípio do século XX. Não existia a recolha do lixo como hoje se conhece e o saguão funcionava para esse propósito.
“Assim que se começaram a fazer as primeiras sondagens, percebemos que existia uma série de níveis que contavam a história daquela casa com imenso material arqueológico e bem preservado”, relembra José Pedro. Estas evidências não podiam ficar suspensas no tempo. Antes das obras de intervenção ao edifício, o arqueólogo crê que estava abandonado há mais de vinte anos e muitos vestígios do decorrer dos séculos ficaram preservados no chão do saguão. O processo era simples: os residentes na casa cavavam um buraco, enchiam-no com lixo e depois voltavam-no a tapar e a escavar outro buraco nesse pátio. E assim o lixo foi descartado durante séculos.
Desenterram-se imensos materiais domésticos de distintas épocas como escovas de dentes em osso, ferros de engomar e cerâmicas. Durante a escavação, os arqueólogos conseguiram perceber quando é que a casa esteve ou não habitada, porque “os lixos refletem os quotidianos” dos residentes, explica Tânia. Apesar de algumas reestruturações neste sítio, há descartes datados desde o século XVI até inícios do século passado. O mais curioso é que não há uma lixeira do século XVIII.
Provavelmente, neste hiato temporal, a casa esteve abandonada. Causa do terramoto de 1755? Não. A destruição causada pelo sismo foi pouco significativa na Rua do Vale e os incêndios não afetaram aquela zona, explica José Pedro. O que torna ainda mais interessante esta casa é que esta não foi afetada pelo terramoto, mas sim por um incêndio nos anos seguintes, acreditam os arqueólogos, dada a descoberta de objetos pós-terramoto associados a uma espessa camada de cinzas.
A casa “sobreviveu e conta-nos uma história arqueológica de um espaço de 30 anos imediatamente a seguir ao terramoto e que nos traz informação muito útil e percebemos essas diferenças” refere José Pedro. Mas as surpresas não se ficam por aqui: encontraram-se restos de três cães e um gato, animais de estimação. E três nados mortos, com 36 e 37 semanas de gestação.
Os animais foram enterrados no saguão enquanto a casa era habitada, explica Tânia, uma prática comum, mas os bebés foram deitados no lixo quando a casa estava desocupada e em obras, nos finais do século XIX. Tânia refere ainda que há “uma quantidade de artigos de jornais no final do século XIX e inícios do século XX a reportar uma quantidade de crianças mortas que aparecem pela cidade de Lisboa” relacionada, supõem-se, com a pobreza e prostituição em redor da zona ribeirinha. Apesar de ainda não se saber se aqueles fetos eram fruto de abortos ou nascimentos prematuros, ainda há outras dúvidas por solucionar: “Os bebés têm o tempo de gestação muito próximo e isso provoca ainda mais perguntas” como se, por exemplo, têm alguma relação genealógica entre eles, refere José Pedro.
A ovelha negra chamada arqueologia
Noutro edifício, na Rua Alves Torgo, em Arroios, Afonso está a lavar as peças recuperadas da escavação, na sede da Cota 80.86. O processo ainda é longo: é preciso escovar bem as peças, deixá-las secar e só depois, se se justificar, unir determinadas partes como um todo. A arqueologia contemporânea entrou na vida dele depois de ter uma unidade curricular com Tânia Casimiro, que lhe revolucionou a forma de pensar.
Aquele edifício cravado com o número 12 tem muitas nuances especiais que vão ser estudadas por Afonso na dissertação de mestrado. Esse trabalho vai resultar no primeiro contexto doméstico arqueológico contemporâneo pós-terramoto estudado no país no final do século XIX. O espólio de Afonso contém desde peças de cerâmicas, garrafas de grés a ossos de ovelhas. O aluno trabalha com José Pedro e com Vanessa Filipe, os responsáveis da COTA 80.86 que sobreviveram à crise de 2011. Não deixaram de trabalhar na área mas nem todos os colegas tiveram essa sorte e abandonaram a profissão.
Atualmente, a estimativa é de cerca de oito centenas de profissionais a laborar no país, insuficientes para dar conta de todo o trabalho que existe. “Quando trabalhas em arqueologia empresarial dificilmente consegues ter os relatórios em dia porque o arqueólogo não pode parar”, salienta Tânia. José Pedro vai ainda mais longe: “Se os arqueólogos parassem para ir fazer os relatórios das escavações, a arqueologia parava em Portugal”.
Não há arqueólogos suficientes e o nível de exigência do trabalho é elevado. Para Tânia, a profissão devia ser definida como de desgaste rápido, visão corroborada por José Pedro e Afonso, porque o desgaste não é só físico, mas também mental. “Repara só o que é estares a trabalhar ao frio, estares a trabalhar à chuva, ao calor.
Apesar de a arqueologia ter as suas contraindicações como qualquer outra profissão, as histórias que se desenterram decerto compensam os sacrifícios.