A geração das crianças que nasceram na Maternidade Bensaúde possui no sangue o passado das suas progenitoras. Uma tese de doutoramento na NOVA FCSH trouxe luz a este espaço clandestino.
A campainha tocou já passava da meia noite do dia 24 de dezembro de 1973. Instantes depois, a porta abriu-se e Magaça entrou. Estava prestes a receber a prenda de Natal: a primeira filha. Sozinha, subiu as escadas da maternidade e ficou à espera. A enfermeira ligou à médica para se deslocar rapidamente ao número 7 da Rua da Beneficência, na freguesia de São Sebastião da Pedreira, em Lisboa.
Cesina Bermudes, a médica pioneira do parto sem dor em Portugal, esteve à cabeceira de Magaça durante horas, devido à dilatação difícil, e ambas estavam a correr perigo: “Não é qualquer pessoa que corre estes riscos, mas ela esteve ali e deu-me força e uma confiança enorme em ter a minha primeira filha, naquelas circunstâncias”. Ambas podiam ser presas, apanhadas pela PIDE/DGS, naquele setor clandestino da Maternidade Bensaúde.
“Magaça” era o nome pelo qual era conhecida entre os camaradas do Partido Comunista Português (PCP), mas Graça Marques Pinto é o seu verdadeiro nome. Graça esteve clandestina até os presos políticos serem libertados, dias depois do 25 de abril de 1974. “Praticamente não saía de casa, tinha um aspeto físico completamente alterado, o cabelo pintado e com cuidados muito grandes quando saía de casa”, recorda. Foi no início de 1973 que decidiu passar à clandestinidade para apoiar a União de Estudantes Comunistas. Pouco tempo depois engravidou, o que complicou ainda mais a clandestinidade: “Não fui a uma única consulta durante toda a gravidez com a doutora Cesina, porque era muito arriscado deslocarmo-nos a qualquer lugar para ter acompanhamento”.
Cesina Bermudes era uma das médicas da Maternidade Bensaúde. Havia um setor “secreto” para as mulheres na clandestinidade ou para mulheres pobres com filhos bastardos, para que pudessem ter as crianças de forma anónima, dado que não lhes era exigida nenhuma identificação. A médica não conheceu Graça, mas sim Magaça. Nunca mais se encontraram: “Toda a minha vida tenho a mágoa de não lhe ter agradecido”.
A história de Magaça e de muitas outras mulheres que tiveram os seus filhos clandestinamente na Maternidade Bensaúde foram o mote de um dos capítulos da tese de doutoramento Virgínia Baptista, investigadora no Instituto de História Contemporânea (IHC) da NOVA FCSH. A tese é sobre mulheres trabalhadoras durante o início do Estado Novo e a Maternidade Bensaúde despertou curiosidade, porque “quando a documentação é silenciosa alguma coisa se passa”.
Descobrir discretamente o que está escondido
Um envelope da parturiente era entregue ao médico. O estado civil da mulher e as últimas vontades, caso entendesse que as devia escrever, ficavam registadas nessa carta, fechada e lacrada num envelope. Depois do parto, esse envelope era-lhe novamente entregue. Sob um manto de discrição das enfermeiras e médicos, era assim assegurado o anonimato destas mulheres, conta Virgínia Baptista. Caso a PIDE as descobrisse, as autoridades podiam requerer o envelope.
No caso de Graça, não houve tempo de escrever . “Tinha vários camaradas que sabiam onde estava, o pai da minha filha e tudo mais, portanto, não tive esse procedimento”, explica. Uma reportagem do jornal Público de 25 de abril de 1999 refere que “a situação era de grande insegurança, mas terão sido raros os casos em que essas mulheres foram descobertas e denunciadas”.
A Maternidade nasceu da última vontade da benemérita Emília Bensaúde, que sem descendentes deixou uma quantia em testamento ao sobrinho Vasco Bensaúde. O objetivo era erguer uma obra de beneficência em homenagem a Abrãao Bensaúde, o marido da benemérita. Foi assim que surgiu, em 1920, a associação de beneficência. A Maternidade foi inaugurada em 1928 por António Fragoso Óscar Carmona, o então Presidente da República, facto curioso “porque se o objetivo era proteger mães numa situação mais frágil parece que há uma cobertura, uma aceitação por parte do poder político”, indica a investigadora.
Nos estatutos da Maternidade pode-se ler que a missão era a de auxiliar e cuidar gratuitamente as mulheres pobres nas últimas semanas antes e depois do parto. Estas mulheres eram ajudadas e ajudavam na maternidade, nomeadamente nas limpezas e a fazer o enxoval dos filhos. As reuniões,revela a investigadora na tese de doutoramento, eram secretas, bem como a identidade das grávidas.
Vasco Bensaúde pediu a três freiras da ordem das Franciscanas Missionárias de Maria para iniciarem funções na associação. Este pormenor é interessante porque “a religião está muito presente”, aponta Virgínia Baptista. O pouco que se sabe das mulheres que entraram na década de 1920 até 1940 foi escrito por Sebastião Cabral da Costa Sacadura, o diretor clínico da maternidade até 1935. O médico indicou que a primeira parturiente entrou em 1927, com apenas 13 anos.
Costa Sacadura revelou ainda numa conferência, indica Virgínia Baptista, que uma maternidade em que trabalhou apenas recebia mulheres abandonadas e pobres, em que a maioria dos bastardos eram de polícias e guardas republicanos “que, segundo o médico, por isso, mais seriam agentes da imoralidade”, escreve a investigadora num artigo (2016) sobre as maternidades portuguesas. Essa maternidade a que se refere Costa Sacadura, seria a Bensaúde.
Já nas décadas de 1950 a 1960, a história era outra. Muitas mulheres estavam na clandestinidade e acorriam à Bensaúde porque eram perseguidas pelo regime fascista. Mas também as mulheres de alta sociedade queriam manter discrição quanto ao nascimento de bastardos.
Os documentos inéditos e os valores que falam mais alto
“Uma das razões que me apontaram na altura e que favorecia o não dar nas vistas, seria o facto de ser recorrente as mães solteiras terem lá as crianças e as famílias não as irem visitar, porque muitas vezes nem sabiam que elas tinham tido as crianças”, recorda Graça Marques Pinto. Antes e depois de Cesina Bermudes, Graça notou uma certa dureza por parte das enfermeiras, talvez fruto de preconceitos e estereótipos associados ao anonimato: “Não fui maltratada, mas quando nasceu a Rita eu tinha dificuldade em dar-lhe o peito, e a enfermeira nessa situação foi um pouco ríspida comigo”.
Margarida Tengarrinha, antigo membro do PCP, esteve na clandestinidade perto de 12 anos. Nascida em 1928, aos 30 anos entrou para a clandestinidade. Esposa de José Dias Coelho, antigo dirigente do PCP e artista plástico – assassinado pela PIDE a 19 de dezembro de 1961 –, foi aconselhada a fazer o parto da segunda filha na Bensaúde, em 1959. Há cinco na clandestinidade, foi para lá que dirigiu devido à discrição do local.
Contudo, os planos foram trocados: a maternidade estava lotada e teve que ir para o Hospital do Ultramar, hoje Hospital Egas Moniz. Acabou por ser assistida por um assistente de Pedro Monjardino, médico que também implementou a técnica de parto sem dor e que também assistia mulheres grávidas na Bensaúde.
A professora, hoje com 91 anos, aponta que em 1959 a maternidade era talvez mais frequentada por mulheres da alta sociedade para terem filhos bastardos. Margarida Tengarrinha não exclui a hipótese de se terem realizado abortos. Não há certezas quanto a este facto, devido aos escassos documentos, mas os abortos eram ilegais e clandestinos – tal como um setor específico da maternidade. No documento de 1953 escrito por Costa Sacadura, corrobora Virgínia Baptista, o mesmo é sugerido pelo médico.
Mas nem todos os partos na Bensaúde foram clandestinos. Elza Paxeco, a primeira mulher a doutorar-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa aos 26 anos, teve os dois primeiros filhos na Bensaúde: Maria Helena, em 1941 e João Manuel, em 1943. Mais tarde, teve Rosa Machado, em 1946, na atual CUF Infante Santo.
“Os meus irmãos é que nasceram na Bensaúde, que era a maternidade mais perto de casa”, conta Rosa Machado, que tem no ADN e no nome muita história: é neta de Fran Paxeco, jornalista, escritor e diplomata que define como “um homem com muita genica” e que foi perseguido pelo Estado Novo. Paxeco tornou-se o representante de Teófilo Braga, depois da sua morte. Hoje, é Rosa Machado que representa a família do antigo Presidente da República.
Bibliotecária aposentada da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), é ainda filha de José Pedro Machado, responsável pelo único Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa e do Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa. Em conjunto com a sua esposa, Elza Paxeco, publicaram o “Cancioneiro da Biblioteca Nacional”. Todas as histórias da família de Rosa Machado não significaram a escolha da Maternidade Bensaúde por uma razão em especial.
“Acho que a minha mãe foi para lá por causa do médico, porque ela morava perto e o médico também fazia lá partos, o D. Pedro da Cunha”. Na Rua Ivens, Elza Paxeco tinha as consultas com o médico, também Marquês de Olhão e à época proprietário de um palácio em Xabregas, e foi direcionada para a Maternidade Bensaúde para ter os irmãos de Rosa.
Os preços, esses, eram avultados, dirigidos às pensionistas – mulheres que pagavam um determinado valor pelos serviços prestados na maternidade. O vencimento dos profissionais da Maternidade Bensaúde ficaram estipulados em Diário da República de 28 de abril de 1938, e os documentos inéditos que Rosa guarda mostram essa mesma realidade. A reação da bibliotecária aposentada quando ouve as histórias “clandestinas” da maternidade é de surpresa: “Para mim é uma maternidade como outra qualquer, por isso é que quando oiço falar que era uma maternidade com esses contornos, para mim é uma maternidade, um lugar igual às outras”.
Da documentação silenciosa, dos partos na clandestinidade e outros de valores avultados, a Maternidade Bensaúde foi um lugar de dicotomias. Apesar de acorrerem mulheres pobres ou na clandestinidade, a maternidade “dá a sensação de que os médicos eram muito bons e prestigiados”, afirma Virgínia Baptista, como se sabe pelos registos. À luz do dia, a maternidade escondia o que era ilegal.
Em 1980, a Bensaúde encerrou portas e atualmente é o Instituto Português de Reumatologia, no número 7 da Rua da Beneficência. No passado ficaram as histórias de mulheres e das suas crianças, marcas de uma época pautada pela repressão, medo e abandono.