“É uma espécie de cápsula do tempo”, como gosta de a definir Leonor Medeiros, uma preciosidade para um arqueólogo que procura reconstituir o passado, mesmo não sendo muito distante. A Fábrica de Descasque de Arroz da Casa Cadaval é um legado importante da sociedade industrial e motivou uma campanha arqueológica, cujos resultados estão a ser estudados.
Já lá vão mais de 30 anos desde que deixou de laborar, mas mantém-se tudo de tal modo preservado que não é difícil imaginar a azáfama dos operários e o ambiente tomado pelo ruído das máquinas, no seu vai e vem incessante. É como se fosse uma fotografia de época, dado o estado original em que se conserva, desde que fechou definitivamente as portas em 1987.
Depois de anos de abrandamento da produção, em que só se trabalhava durante quatro meses por ano, a Fábrica de Descasque de Arroz da Casa Cadaval encerrou de vez, ao fim de 25 anos de trabalho. “Houve coisas que desapareceram, como os silos de secagem e as máquinas de embalamento, mas, no geral, está muitíssimo completa. É uma raridade que precisava de ser estudada e documentada”, conta com visível entusiasmo Leonor Medeiros, professora da NOVA FCSH e líder da investigação.
A fábrica ergue-se junto à ribeira de Muge, um dos afluentes ribatejanos do rio Tejo, fechando o ciclo de produção dos campos de cultivo de arroz das imediações. É uma zona favorável à fixação humana desde tempos remotos. Não muito longe, estão os Concheiros de Muge, um importante sítio de ocupação pré-histórica. Na verdade, há até uma relação casual com este lugar que levou a despertar o interesse pelo património fabril: foi a equipa da Universidade do Algarve que estuda os Concheiros, que chamou a atenção dos colegas da Universidade Nova de Lisboa que se dedicam à arqueologia industrial.
Escavar o passado
Ainda que se continue a chamar “escavação”, não se trata do habitual trabalho de retirar camadas de terra do solo. “Neste caso trata-se de fazer o registo, assim como o levantamento e interpretação, de tudo o que encontramos”, explica Leonor Medeiros. Um dos objetivos para esta campanha arqueológica era mapear toda a fábrica, ter uma leitura dos vários sectores e perceber como se distribuía o processo, desde a entrada do arroz na fábrica, até à sua saída, já ensacado.
“Aqui, ainda se usou muito a madeira em diversos equipamentos, como os elevadores, por exemplo, que ainda estão todos e em excelentes condições.”
Começam por tirar uma fotografia de tudo tal como está e são criadas fichas de sector, o nome que atribuem a cada sala. É nas fichas de sector que é feito o registo do que é observado, mas já retirando o material que encontram que não pertence à fábrica, como é o caso de um saco de rolhas que foi aqui armazenado.
Trata-se de um processo minucioso, é necessário limpar não apenas o pó, mas os dejetos dos animais que se foram apropriando do espaço ao longo do tempo, como as corujas que os surpreenderam logo no primeiro dia. “Temos de limpar com cuidado, para podermos fazer uma leitura da máquina e identificar as inscrições, como a marca, o construtor, o modelo, a data, etc.”, pormenoriza a investigadora. Nesta fase, também procuram perceber que tipo de produto era utilizado em cada máquina: se o arroz já limpo ou ainda em casca, por exemplo.
Talvez não seja óbvia a relevância deste achado, para quem está menos familiarizado com esta área de estudo. Para perceber com mais clareza, é preciso estar consciente das limitações de trabalho de um arqueólogo. Boa parte das vezes, é chamado para escavar dentro de um lote que está a ser intervencionado, não podendo ir além desse limite. “Temos janelas de sondagem pequeninas e temos de reconstituir uma realidade muito maior, a partir desse bocadinho. Esta fábrica era uma oportunidade de encontrar o processo muito completo.”
Além da caracterização específica desta unidade fabril, um espaço tão bem conservado permite obter dados que podem vir a ser úteis noutros estudos arqueológicos. “Quando vemos uma determinada marca no chão, queremos associar aquele ‘negativo’ a uma máquina específica, daí a importância dos dados que obtemos num sítio tão completo, para reconstituirmos outras realidades.” Trata-se de uma fábrica de um período muito recente, um testemunho muito bem conservado da sociedade industrial e de um período em que já começou a transição para o período pós-industrial.
O cultivo do arroz começou a ser incentivado pelo próprio Estado na segunda metade do século XIX. “A comunidade sentia que os campos de arroz eram um ambiente hostil, por causa da proliferação de mosquitos, muito associados a doenças. E são os próprios investigadores dos institutos de agronomia que defendem que se invista num produto com boas características energéticas”, explica Leonor Medeiros.
A fábrica nasceu em 1962, mas na verdade ainda usa tecnologia que se desenvolveu durante a primeira metade do século. “Já se estava a usar o equipamento metálico, nesta altura”, esclarece a arqueóloga. “No entanto, aqui, ainda se usou muito a madeira em diversos equipamentos, como os elevadores, por exemplo, que ainda estão todos e em excelentes condições.”
Mas a grande atração é a máquina a vapor, ou não fosse o símbolo da Revolução Industrial. Além de ter a particularidade de ser alimentada a casca de arroz, serve para produzir o movimento que faz funcionar o gerador de eletricidade. “Eletrifica não só a fábrica, como os edifícios que estão à volta”, descreve a investigadora. “Distribuía a eletricidade por todo o núcleo: ia para a adega, para o palácio… E aproveitando um subproduto, a casca do arroz.”
Toda a fábrica é um bom exemplo de aproveitamento da matéria-prima na sua totalidade. Para se obter o arroz branquinho, é preciso retirar uma película, além da casca, gerando-se diversos subprodutos, além do arroz branco, propriamente dito. “O arroz partido ou trinca, que resulta do descasque, entre outros usos, é aproveitado para alimentação animal, a própria farinha de arroz era vendida localmente. Tudo é aproveitado, não há desperdício”, conta Leonor Medeiros.
Pensar na utilização futura
A Casa Cadaval, proprietária da fábrica, tem a intenção de valorizar o local, dando-lhe um novo uso, mas ainda não há um projeto definido. “Pode vir a incluir um núcleo interpretativo dos Concheiros de Muge, assim como um centro de interpretação desta indústria orizícola”, adianta Leonor Medeiros. “Não temos uma economia que permita preservar máquinas do tempo, é importante encontrar novos usos para estes espaços que ajudem a preservar o que têm de único”, conclui a investigadora.
Nesta campanha arqueológica, além dos seis alunos da licenciatura em Arqueologia da NOVA FCSH, participaram também dois alunos da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa (FAUL), um de mestrado e outro de doutoramento. “Achei pertinente esta colaboração com Arquitetura, para trocarmos metodologias”, esclarece a responsável da campanha. Normalmente, o arqueólogo trabalha primeiro e só depois intervém a equipa de arquitetura e engenharia que vai converter o espaço.
“Temos de trabalhar em conjunto, para encontrarmos o equilíbrio entre as necessidades do presente e estes testemunhos do passado que têm valores que podem ser úteis para o futuro”, defende Leonor Medeiros. “É um desafio e tem de resultar do trabalho de uma equipa transdisciplinar e multidisciplinar.”
Neste processo, na sua opinião, é fundamental saber ouvir a comunidade. “É o nosso dever, enquanto profissionais do património. Devemos perguntar-lhes o que esperam ver acontecer aqui, porque é uma comunidade com uma ligação muito forte a este sítio.” Os laços ficaram bem expressos no dia aberto que fechou a campanha arqueológica. Chegaram antigos trabalhadores, filhos com recordações ainda de quando eram crianças, e partilharam memórias e histórias que viverem entre estas paredes.
O inventário do património industrial que resulta deste estudo é entregue à Direção-Geral do Património Cultural, para ser guardado. Os dados ficam assim acessíveis a qualquer outro investigador que deseje fazer novos estudos.