Parece improvável a amizade entre consciência e literatura, mas é possível associar uma à outra. Afonso Reis Cabral aceitou o desafio e escreveu a tese de mestrado sobre o assunto na NOVA FCSH, ao mesmo tempo que preparava o manuscrito do seu primeiro livro, vencedor do Prémio LeYa em 2014. Mais tarde, tornou-se um dos “Herdeiros de Saramago”.
A “décima quarta casa, a última depois da igreja à esquerda”, é o seu sítio preferido. De quando em vez, quando o trabalho lhe permite, é lá que se abriga, de pés descalços sobre as pedras, a mergulhar nas águas do rio Paiva ou simplesmente a meditar sob um pano imenso de natureza.
Agora, foi o confinamento que decidiu proporcionar-lhe dias de refúgio no Tojal, no concelho de São João da Madeira, para ter um pouco mais de liberdade. Esta é a casa de Afonso Reis Cabral, antigo aluno da NOVA FCSH e laureado com dois prémios literários: o primeiro, o Prémio LeYa, em 2014, e o segundo, o Prémio José Saramago, em 2019.
“O meu irmão” (LeYa, 2014) e “Pão de Açúcar” (Dom Quixote, 2018) são dois livros que têm em comum a ficção com uma dose de realidade, marca distinta do escritor. No primeiro, a história baseia-se na relação entre dois irmãos, com apenas um ano de diferença, em que o mais novo tem Síndrome de Down. Na vida real, é Martim Reis Cabral o irmão com Síndrome de Down de Afonso: “«O meu Irmão» parte de uma realidade que tenho ou que já tinha, por isso foi fácil escrever sobre ele”. A história passa-se no Tojal, mas o desenvolvimento da narrativa é ficcional.
A história é contada pelo narrador, na primeira pessoa: “Ele olha para o irmão e sente inveja e o que eu pensei foi: «E se eu deixar a inveja à solta?» e daí o fim do livro, tudo a encaminhar-se para aquele momento selvático”, explica o escritor. A obra é desconcertante e confronta a ação da história com o relato do irmão mais velho, de forma a que “o narrador está a fazer uma espécie de confissão, mas ele acaba por confessar da maneira que lhe interessa mais”.
Do primeiro livro em diante, “Pão de Açúcar” baseia-se na história do assassinato de Gisberta, um travesti, por um grupo de adolescentes, na cidade do Porto em 2006. Para escrever sobre o crime, Afonso palmilhou os sítios da cidade para perceber melhor o contexto do homicídio. Investigou, fez os trabalhos de casa, mas o livro não é uma reportagem literária, refere: “Eu tenho um compromisso com ficção, e ao ter esse compromisso uso o caso real, respeito determinadas balizas que não poderiam deixar de ser respeitadas, mas a partir daí estou livre para a ficção e para a literatura. Esse é que é o meu compromisso”, clarifica.
As duas obras do escritor são baseadas em realidades, mas pintadas com ficção. E o objetivo da literatura é muito claro para Afonso. O confronto. Afonso escreve para o outro, escreve para que o leitor pense, reflita naquilo que leu e projete em si próprio. “A literatura vive disso”.
À boleia do Prémio José Saramago, Afonso ainda recebeu distinção de Men of the Year Award da GQ pelo seu contributo literário. Mais tarde, ainda nesse ano, gravou o documentário “Herdeiros de Saramago”, criado por Carlos Vaz Marques, disponível na RTP Play. Os caminhos são agora mais amplos para o escritor, em que o gosto pela literatura e pela escrita continua a correr-lhe pelas veias. Não fosse ele, também, trineto de Eça de Queirós, a quem, 120 anos depois da sua morte, foram concedidas as maiores honras póstumas: as do Panteão Nacional.
Afonso tem uma voz calma, assertiva e pautada por sentido de humor. Conta que nunca pensou ter outra profissão sem ser na literatura – à exceção de um vislumbre muito efémero em ser juiz – e foram a persistência e a disciplina que o guiaram até aos dias de hoje.
Os enigmas dos versos de Amália
“Para mim foi um momento muito marcado, é uma fronteira. Eu sei perfeitamente que antes não escrevia e comecei a escrever a partir daí e nunca mais parei”. Afonso nasceu em 1990 e cresceu entre as duas áreas metropolitanas. Abriu pela primeira vez os olhos em Lisboa, tornou-se adolescente no Porto e regressou à capital aos 18 anos para tirar a licenciatura em Estudos Portugueses e Lusófonos na NOVA FCSH.
Mas foi em 1999 o ponto de viragem. Portugal acordou com a notícia da morte de Amália Rodrigues, a voz que cantou o fado nos quatro cantos do Mundo. Para uma criança de apenas nove anos, como Afonso, era um acontecimento que podia passar despercebido, não fossem as músicas que começaram a passar na televisão. Aliciado, começou a consumi-las e a tentar compreender os mistérios envoltos em cada estrofe, nas canções de amor e ódio, na musicalidade dos poetas clássicos, em toda a estrutura.
“Para uma criança de nove anos era muito misterioso, como é que uma voz consegue levar ao colo aquela poesia”. Para ele, era um desafio literário, o primeiro. E foi nesse momento que a fronteira se tornou demarcada: O Afonso antes de escrever e o Afonso após a descoberta da escrita.
“De certa maneira, aquela poesia chamou-me para a literatura, ou seja, havia ali uma pergunta e eu não sabia qual era a pergunta, mas sabia que tinha de responder a qualquer coisa”. E os frutos começaram a surgir. Nos cadernos, nasceram contos, pequenos textos – cada vez maiores com o passar do tempo – e a poesia. Escrevia sobre o que lia: “Eu inventava [as amarguras]. Por exemplo, com 11, 12 ou 13 anos eu escrevi sobre as saudades da infância. Quer dizer, eu estava em plena infância! Escrevia sobre a amargura e as saudades da infância e porquê? Porque era isso que eu lia em Fernando Pessoa e assim eu reproduzia à minha maneira”, conta entre risos.
Hoje, percebe que a poesia foi a alavanca para a prosa. “De facto não sou poeta, publiquei um livro de poesia aos 15 anos e deixei-me disso, porque percebi perfeitamente que não tinha qualidade para continuar”. “Condensação” (Corpos Editora, 2005), o livro que publicou, teve o prefácio de Maria Helena Padrão, professora de Português na Escola Secundária Rodrigues de Freitas, a amiga que Afonso que não perde “uma oportunidade para falar dela”.
Mas ainda antes, a curiosidade do escritor, à época com apenas 13 anos, levou-o a viajar até à Alemanha num camião TIR com um amigo. Foi à procura de respostas, de novas estórias. Mais tarde, voltou a repetir a façanha. Ao longo da adolescência, teve referências de docentes que o ajudaram a olhar de uma outra perspetiva para a língua portuguesa, como o exemplo de Alexandra Azevedo, professora de latim e grego na mesma escola que Maria Helena Padrão. Mais tarde, as referências que lia empurraram-no para a NOVA FCSH. “Eu lia livros e ensaios e artigos dos professores que estavam na FCSH, e isso para mim era importante” e dá um exemplo “um dos casos paradigmáticos disso era que eu lia já na revista Ler os ensaios e os artigos do professor Abel Barros Baptista, que tem um sentido de humor extraordinário, e isso deu-me muito para ir para a FCSH”.
Ingressou na licenciatura, mas antes começou a cimentar, ainda no secundário, as bases para futuros trabalhos académicos. Pouco mais de 275 quilómetros separam Porto de Lisboa, e a capital passou a ser a nova casa do escritor, a trabalhar e a estudar em simultâneo. Aos 18 anos começou por ser freelancer em revisão, trabalho que confessa não ter muita vocação, e depois progrediu para editor. “Foi muito útil porque me ajudou a pagar coisas e também é bom começar a trabalhar ao mesmo tempo que a faculdade, aos 18 anos. Dá experiência, dá energia”, aponta com um sorriso.
O sentido crítico é importante para Afonso. Explica que um curso de literatura não ensina os estudantes a escrever, mas a ser melhor leitor porque “não há escrita sem leitura”. Paula Cristina Costa foi outra docente que marcou a licenciatura de Afonso: “Eu nunca tive aulas com ela, era sempre como se fosse uma conversa, especialmente interessante, e eu acho que isto é dizer bastante”, afirma.
Depois de concluir a licenciatura na NOVA FCSH, avançou para o mestrado em Estudos Portugueses sob a orientação de Silvina Rodrigues Lopes. Desconcertado com o ensaio de David Lodge “A Consciência e o Romance” decidiu que o tema para a dissertação estava escolhido. Como é que duas ciências, uma exata e outra social e humana, se conjugam? Afonso tentou responder a essa inquietação.
A orquestra oculta e as viagens além-mar
“Somos nós que pairamos sobre o texto e não o texto que paira sobre nós”. Esta é a frase que conclui a dissertação (2013) de Afonso. Ao socorrer-se de vários especialistas da área, como António Damásio, Afonso explorou estas duas dimensões que parecem improváveis. “Quando ele [António Damásio] diz que o maior cientista que houve foi Shakespeare, isto põe logo pressão na nossa área, nas humanidades e na literatura”.
Mas antes das conclusões, o escritor organizou as ideias segundo o formato americano. Quem lê a dissertação, sabe que não está perante o modelo puramente académico, mas sim num texto com uma suavidade na estrutura e na escrita. A cada inquietação, Afonso encara-a como um desafio literário. E neste período temporal, escrevia para a conclusão do segundo ciclo e para o manuscrito d’“O meu Irmão”.
E essa escrita paralela acabou por se refletir no primeiro livro literário de Afonso, mesmo sem o mesmo se aperceber. O escritor socorreu-se dos incisos (letras mais pequenas em relação ao corpo do texto, que não alteram o rumo da história e a coerência da narrativa) e “o que o narrador diz é despoderado, pode dizer as maiores barbaridades ou pode dizer as maiores bondades sem ter consciência que o leitor faz parte do jogo. É aí que ele diz as observações mais acutilantes sobre o irmão e sobre si próprio”.
A escrita da dissertação refletiu essa época da vida do escritor. A consciência sob a forma literária está lá. Invisível, mas visível. E na última frase da conclusão da dissertação, Afonso lança o repto para refletir sobre esta dicotomia. Contudo, aponta que a escrita e a leitura, o confronto com o outro, quer nas personagens dos livros, quer na vida real, é importante para ajudar à descoberta do próprio ser. Daí a necessidade, em muitos casos, de reler determinado livro, porque “a literatura é feita de confronto”.
“Essa descoberta ajuda à construção do nosso próprio Eu. Eu não seria o mesmo se não fossem as leituras que tenho tido, nem serei o mesmo se parar de ler agora, acho que ficaria muito limitado”, clarifica o escritor.
E nessa descoberta do ser, Afonso também se descobre, alivia a ansiedade através da prática de boxe que agora “é tele-boxe”, diz entre risos. Mas é necessário mens sana in corpore sano porque “o desporto somos nós a pensar com o corpo”. E a pensar com as pernas, decidiu em 2019 percorrer os mais de 700 quilómetros da Estrada Nacional 2, que liga Chaves a Faro. Em 24 dias, atravessou serras, rios, planícies e encontrou o melhor da humanidade, traduzia em apoio, hospitalidade e bondade.
No dia final do percurso, encontrou três meninos ciganos, com nove ou dez anos, muito magros. Perguntou-lhes se estavam bem e se a família estava por perto, ao que responderam, em romeno, que não estavam sozinhos. Quando Afonso decidiu prosseguir caminho, um desses meninos disse, “em português muito bem dito: Leva-me contigo”.
O episódio foi um murro no estômago para o escritor que todos os dias partilhava o resumo do dia nas redes sociais: “É tão punjante uma criança dizer isso a um perfeito desconhecido que para já esse momento era a única coisa que eu ia relatar nesse dia, e depois que esse seria o título do livro” que, mais tarde, o publicou com aquele pedido do menino romeno (Dom Quixote, 2019).
Agora, em pleno confinamento, Afonso viu um dos seus projetos adiado para 2022. O escritor propôs-se a viajar pelos lugares onde Luís de Camões passou enquanto escrevia “Os Lusíadas”. A partir de Ceuta, Marrocos, Goa, Macau e por outros caminhos, Afonso quer desafiar pessoas, desde as com quem se cruza na rua, a cientistas ou outras personalidades, a escrever à mão uma estrofe da épica obra. “É suposto que «Os Lusíadas», esta edição, ou este manuscrito, seja um espelho da nossa sociedade” pela mão de quem escreve.
No total, são 1.102 estrofes que aguardam mostrar o reflexo da nossa sociedade.