De uma prática ilícita, praticada por gente invisível, o graffiti tornou-se uma expressão artística que agora até tem lugar em galerias de arte. O projeto Transurbarts quer perceber esta nova realidade que é aceite pelos poderes públicos e serve até de mote para passeios turísticos. A arte urbana perdeu a escala local para se tornar a identidade de uma comunidade global.
É ainda cedo, mas já se adivinha um dia de muito calor, talvez por isso, quase só se vejam pessoas mais velhas, a aproveitar as horas mais frescas da manhã para tratar dos seus afazeres. É inevitável reparar no contraste que oferecem à paisagem, povoada de murais gigantescos de graffiti, que ocupam de alto a baixo as empenas quase cegas do Bairro Padre Cruz. O cenário para esta conversa não foi escolhido por acaso: Ricardo Campos investiga arte urbana e o que hoje observamos mostra que muito mudou neste universo, em pouco mais de uma década.
“Aqui vemos murais que foram autorizados, que já traduzem não só uma aceitação dos poderes públicos como um incentivo a este tipo de expressão artística”, diz o investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.Nova) da NOVA FCSH. As pinturas são uma herança da primeira edição do Muro — Festival de Arte Urbana, que decorreu em 2016 e desde então deixou um novo pretexto para visitar esta freguesia de Lisboa.
É uma realidade muito diferente da que o cientista encontrou quando se começou a dedicar a esta área. Durante o seu doutoramento (2004-2008), interessava-lhe investigar o graffiti como prática ilícita e de natureza transgressiva, como expressão de uma subcultura urbana, em confronto com o poder, de acordo com a sua descrição. “Fui surpreendido com o que descobri. Não surge de forma imprevista, espontânea. Por trás, há uma estratégia, uma forma de organização e uma comunidade com laços fortes, com uma identidade, com uma história cultural.”
Meio século de história
Trata-se de uma forma de expressão que surgiu nos anos 1970, em Nova Iorque (EUA) e que, passado quase meio século, ainda persiste. “O que era curioso, para mim, era a extensão da comunidade, a rede que se tinha estabelecido. Estamos a falar de algo produzido por jovens, por vezes muito novos, 12, 13 anos, e em missões arriscadas, como pintar comboios”, explica Ricardo Campos. “Pareceu-me fascinante toda esta comunidade invisível, em contraste com a visibilidade pública das pinturas presentes na paisagem urbana.”
Ainda era uma realidade bastante desconhecida, principalmente do ponto de vista académico, e os próprios grupos eram muito mais pequenos e circunscritos a espaços de dimensão local. É preciso ter em conta que a Internet era ainda muito pouco expressiva. “Eu pintava e conhecia aqueles que pintavam no meu bairro ou na minha cidade, mas dificilmente conhecia aquilo que se fazia fora do país ou mesmo noutras cidades”, sintetiza Ricardo Campos, retratando a perspetiva dos artistas. “Agora é comum muitos jovens irem passar temporadas noutros países, para pintar, e receberam outros amigos que vêm pintar em Lisboa. Há esta reciprocidade que gerou esta ideia de comunidade global.” Conhecem quem pinta em S. Paulo, Buenos Aires, Londres, Barcelona… “Tornou-se um fenómeno global de forma muito rápida, o que é muito importante para criar esta identidade global de quem faz parte deste movimento.”
Houve uma alteração de escala, mudou a relação com os poderes instituídos e diversificaram-se os atores. “O que me interessa agora é perceber porque é que de repente surge este tipo de murais e este tipo de expressão é valorizado pelas entidades públicas”, explica Ricardo Campos. Quer fazer o contraponto com o que, segundo as suas palavras, era subterrâneo, alternativo, transgressivo, feito por uma comunidade invisível, muitas vezes sujeita a perseguição pelos diferentes poderes. “É este processo que me interessa. Pesquisar como é que algo que há duas décadas era considerado de natureza vandálica, algo que não tinha valor, é hoje considerado como um movimento artístico que é reconhecido como tendo potencial cultural e artístico e pode ser uma mais-valia para as cidades.”
O mercado da arte
Atualmente, há um número significativo de artistas que fazem carreira não apenas através do seu trabalho na rua, mas também expondo em galerias e fazendo parte do mercado da arte, como é o caso do português VHILS. “Parece ser o primeiro movimento artístico com algum peso que assume esta ambivalência, esta duplicidade, entre a rua e a galeria, entre um lado mais informal e um lado mais institucional.”
Ao mesmo tempo, segundo o investigador, houve uma proliferação de linguagens que torna ainda mais difícil definir estas fronteiras. “Há quem fale de street art, quem prefira arte urbana, não é muito consensual. Não estamos a falar apenas de graffiti, mas também de stencil, autocolantes, pósteres, tricô…”, enumera. “Houve uma explosão de linguagens e de expressões.”
Entre os principais intervenientes desta nova realidade, o investigador identifica os media, as autarquias, os agentes de turismo, o mercado da arte e, claro, os artistas. “Queremos construir um mapa dos diferentes agentes que são relevantes nesta área”, diz Ricardo Campos, explicando um dos objetivos do projeto Transurbarts, em que também participa a investigadora Ágata Sequeira. “Queremos perceber quais são os seus propósitos, os seus objetivos, as suas práticas.”
Em relação aos meios de comunicação social, merece-lhe uma atenção particular a “reconfiguração do discurso”: “Há 20 anos, quando se falava de graffiti falava-se de vandalismo. Se fizermos uma pesquisa na net isso é muito evidente: agora vemos o termo ‘arte’ associado.” Também entre as autarquias a mudança é significativa, com festivais de arte urbana a acontecer um pouco por todo o país. “Perceberam que é uma forma relevante para construir uma nova imagem, mais cosmopolita, mais contemporânea e que atrai turistas.”
O exemplo mais paradigmático, segundo Ricardo Campos, é o da Quinta do Mocho, que inclusive já faz parte de roteiros turísticos em que se dão a conhecer os murais. “Há uma estratégia deliberada de transformação da paisagem urbana destes bairros, da sua valorização e da sua abertura ao exterior.” Uma vez mais uma pesquisa na Internet mostra o impacto da mudança. “Antes das intervenções, o discurso era em torno da violência, do crime, da estigmatização. Hoje em dia, fala-se de arte, de museu a céu aberto, da maior galeria de arte urbana da Europa”, remata Ricardo Campos.
Transurbarts é um projeto financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (2017-2021) e tem por instituição de acolhimento o CICS.Nova da NOVA FCSH.