O projeto Life Berlengas ajudou a recuperar a biodiversidade do pequeno arquipélago. Envolver a comunidade foi um dos objetivos do trabalho da equipa do CICS.NOVA, participante deste projeto europeu que arrancou em 2014 e foi prolongado até junho de 2019. Agora, o projeto é candidato ao prémio Natura 2000. Retrato de um dia de missão com investigadores da NOVA FCSH, na Berlenga Grande.
É preciso sair da proteção natural da península de Peniche, para se ficar a conhecer o verdadeiro estado do mar. Faz parte do fascínio de ir às Berlengas saber que os humores do Atlântico são particularmente imprevisíveis nesta zona e podem mesmo transformar a travessia numa aventura radical, avisam os companheiros de viagem. Mas hoje a ondulação está fraca, apesar dos efeitos do vento fazerem respingar a bombordo e, em menos de meia hora, o biólogo Ricardo Nogueira Mendes e o geógrafo Carlos Pereira da Silva, do CICS.NOVA, chegam ao destino sem sobressaltos.
O propósito da sua vinda é retirar as câmaras e os contadores que ainda restam na ilha e ajudam a traçar um retrato rigoroso dos visitantes. “Quantos são e quem são — esse é o ponto central da nossa participação”, afirma Carlos Pereira da Silva, líder da equipa do CICS.NOVA. Além do equipamento situado em pontos estratégicos, de modo a contar quem passa, o perfil dos visitantes foi completado com campanhas de inquéritos.
De maio a setembro, chegaram a valores que rondam os 65 mil visitantes, em 2015, 79 mil em 2016, com as estimativas para 2017 e 2018 a ultrapassarem os 80 mil. Mais, constataram que em vários dias estão mais de 1200 pessoas simultaneamente na ilha, o triplo da capacidade de carga que se calcula como máxima para a Berlenga Grande, uma vez que o acesso aos ilhéus é muito restrito. Trata-se de uma medida que estima o máximo de pessoas que devem estar ao mesmo tempo num território, de forma a não comprometer, entre outros, os recursos naturais.
“A ilha tem cerca de 1 km2 e só se pode circular pelos trilhos, por se tratar de uma reserva natural”, explica o geógrafo. “Não tem água — toda a água tem de ser transportada para cá —, as infraestruturas, como as casas de banho, são limitadas e há outra questão importante a ter em conta neste cálculo: a segurança.” São os próprios visitantes que consideram excessivo o número de pessoas na ilha, como revela o barómetro do CICS.NOVA. Quem visita a ilha pela primeira vez ainda revela alguma tolerância, enquanto os visitantes regulares são bem mais críticos.
É difícil imaginar um território tão pequeno e com uma circulação restrita aos trilhos a abarcar mais de um milhar de pessoas. O mês de setembro está quase a terminar e parece um autêntico dia de verão, ainda que o calendário diga que já começou o outono. Mas não há dúvidas de que a época alta acabou, tão poucos os turistas, nacionais ou estrangeiros, que se avistam.
Paramos junto ao cimo da falésia, para que Ricardo Nogueira Mendes retire a câmara que está sobranceira ao areal e ao porto, um local estratégico para se retratar o movimento de um dia de visitas intensas. Fazendo jus ao lugar-comum, uma imagem vale mais que mil palavras ou, no caso, a sucessão de imagens tiradas automaticamente a intervalos de 10 minutos. “No pico de utilização, chegam a contar-se 300 pessoas” na pequena área de areia que nem sequer está classificada como praia, diz Ricardo Nogueira Mendes. Nem o cordão que define a distância de proteção de derrocadas é respeitado. Começa por ser usado para pendurar as toalhas, bastando que o sol se torne mais forte para que alguém ultrapasse a barreira e logo haja quem lhe siga o exemplo, até não haver qualquer distinção entre a zona segura e de risco.
Recuperar a natureza
Já não se veem coelhos por estas paragens, o que é um bom sinal para a recuperação da flora endémica da ilha. Trazida pelo homem, é uma espécie invasora que se alimenta de praticamente todas as plantas, levando inclusive a que grandes áreas da ilha ficassem descobertas de vegetação. Por outro lado, também contribuiu para a erosão do solo, através da construção de tocas e túneis.
Outra espécie invasora que parece já erradicada é o rato-preto. Ao longo da ilha, ainda se existem uma série de armadilhas, mas atualmente só para controlar se o isco se mantém intacto. Com o seu desaparecimento eliminou-se uma das ameaças às aves marinhas, cuja proteção faz parte dos objetivos do Life Berlengas.
Vinda do ar, a gaivota-de-patas-amarelas é também uma ameaça. No entanto, a sua população já foi reduzida. O controlo foi feito através da inviabilização de alguns ovos nos ninhos — continuam a ser chocados, mas por terem sido furados não dão origem a uma nova cria; caso fossem destruídos, a gaivota poderia voltar a pôr um novo ovo.
Além de concorrerem com o território de nidificação de outras aves, os seus dejetos nitrificam o solo em demasia, contribuindo, a par do coelho e do rato-preto, para que espécies endémicas tenham quase desaparecido. Foi o caso da arméria-das-berlengas, criticamente ameaçada, e da pulicária-das-berlengas e da herniária-das-berlengas, cujo estado é considerado vulnerável. Outro fator foi uma espécie invasora que tomou conta dos seus habitats: o chorão.
Atualmente já é visível que o coberto vegetal é feito principalmente da vegetação natural da ilha, incluindo as pequenas plantas autóctones que só se tornam evidentes nos períodos de floração. O chorão foi arrancado da maior parte do solo, persistindo ainda um tapete na rocha a ladear o areal, deixado intencionalmente para não aumentar o risco de erosão da falésia. No resto da ilha, veem-se apenas alguns tapetes a secar, de raízes para cima. Secos são muito menos pesados e mais fáceis de recolher, para serem depois destruídos. Ainda assim, o seu reaparecimento continua a precisar de ser controlado.
Respeitar os resultados
“O principal objetivo do Life Berlengas era recuperar todo este ecossistema, mas reconhecendo que tem uma importância económica muito grande, principalmente para Peniche. Significa que — vamos ser realistas — também tínhamos de disciplinar a visitação”, diz o responsável da equipa do CICS.NOVA, sintetizando as ideias-chave do projeto.
Por isso, outra das componentes da intervenção foi a sensibilização dos principais grupos de interessados: os pescadores e os operadores turísticos, que asseguram as travessias e as visitas. Nesse sentido, organizaram diversos workshops para os envolver e comprometer com os resultados. “Ganhar a confiança é muito importante e demora tempo”, diz Carlos Pereira da Silva. E é aqui que o know-how das ciências sociais pode fazer a diferença.
“Começámos por perguntar aos pescadores e aos operadores turísticos o que queriam que a Berlenga fosse daqui a cinco anos. E então explicámos o que era necessário mudar para que isso fosse possível e, com isso, sentiram-se parte do processo”, exemplifica. Os objetivos eram claros: “Queríamos partilhar os resultados, ouvir a sua opinião sobre eles e que os validassem.” E foi o que sucedeu, com os operadores marítimo-turísticos a aceitarem os números de visitantes apurados e eles próprios a concordarem que era necessário controlar a visitação.
“Neste momento, não existe nenhuma área protegida em Portugal com tanta e tão boa informação sobre a visitação como esta”, diz o geógrafo. “Claro que há condições especiais que o justificam: é uma área pequena e o acesso é relativamente controlado, por se tratar de uma ilha. Mas desenvolvemos metodologias muito eficazes, com um erro inferior a 10%, e que vamos usar noutros locais.”
Só o decorrer do tempo permitirá saber como este pequeno território se foi regenerando. Por ora, foi com entusiasmo que a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA) anunciou que o pequeno roque-de-castro voltou a nidificar na Berlenga, quando antes só se avistava nos ilhéus. Quem sabe se o airo volta a chamar casa ao arquipélago, tornando vivo o símbolo da reserva que há quase duas décadas não nidifica por estas paragens.
O projeto Life Berlengas é coordenado pela SPEA e tem como parceiros, além da equipa da NOVA FCSH, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e a Câmara Municipal de Peniche, tendo ainda a Escola Superior de Tecnologia e do Mar do Instituto Politécnico de Leiria como observador. O projeto, que decorre de 2014 a 2019, é cofinanciado pelo Programa LIFE+ da União Europeia e pelo Fundo Ambiental.